“– Devo depreender
que, depois dos muitos anos de serviço que dei a esta casa, o senhor não tem
mais nada para dizer, depois de o informar da minha possível partida, do que as
palavras que acaba de proferir?
– Miss Kenton,
tem as minhas mais calorosas felicitações. Mas, repito, lá em cima estão a
suceder coisas de importância global e tenho de voltar para o meu posto.”
p.221
Não tenho por
hábito dar muita atenção aos laureados com o Prémio Nobel da Literatura. Não
ponho em causa o mérito e, sem dúvida, a qualidade da escrita de vários
vencedores. Simplesmente, não creio que seja salutar esperar ansiosamente a
nomeação, quase como quem espera o resultado de uma eleição política nacional
(só lhes faltam as bandeirinhas e os slogans partidários), e correr às
livrarias para comprar um romance, um conto, uma peça de teatro, as mais das
vezes publicados há anos, e que nunca antes nos suscitou o mínimo interesse.
Kazuo Ishiguro, todavia, marcou a diferença. Desconhecia por completo,
confesso, o autor e a obra. No entanto, chamou-me a atenção um dos seus
primeiros romances, Os Despojos do Dia.
Trata-se de uma
espécie de diário de reminiscências, de recordações, do passado de um mordomo,
Stevens, de uma grande casa senhorial inglesa, Darlington Hall, enquanto
empreende a sua primeira viagem recreativa pelo interior de Inglaterra, para
visitar o amor de uma vida, amor platónico, nunca confessado, Mrs Benn, que
teima em apresentar pelo nome de solteira, Miss Kenton. Quanto mais não fosse
por este livro, Ishiguro mereceu bem o reconhecimento do Nobel. Impressionou-me
sobremaneira como consegue dar forma a todo o longo debitar incessante de
palavras que brotam da mente, e da consciência, de Stevens na sua demanda pela
justificação de uma vida que tardiamente entende desperdiçada, da sua dignidade
e imolar do reconhecimento da figura do pai, também mordomo, à qual tudo
devotou. Stevens, que não deixa de me recordar Mr. Satterthwaite, da obra de
Agatha Christie, O Misterioso Mr. Quin,
é um perfeito cavalheiro: levou a vida toda a aperfeiçoar esse papel apenas
para descobrir as suas tremendas fragilidades, sempre à espreita, sob a fina
película de polimento britânico, que o levam à, cada vez mais firme, certeza de
a ter desperdiçado por um ideal vazio e despojado de sentido. É impossível não
encontrar nesta demanda traços ou semelhanças com a vida de cada um de nós,
meros mortais, errando inconscientemente pela selva azafamada do mundo moderno.
Com Stevens, apercebemo-nos de que somos todos, a dada altura, mordomos
dedicados a algo e, o que é pior, a alguém que nos suga o viço dos nossos
melhores anos a troco de uma certa quantia mensal.
The Remains of the Day (1993), realizado por James Ivory
Aquilo que
contribui muito para o encanto de Ishiguro é, sem dúvida, o seu estilo, um
misto da leveza e elegância narrativa de Scott Fitzgerald com a profundidade
psicológica de Stendhal. Só através do combinar destes elementos podemos aceder
àquilo que o autor chama a “textura da memória”, receptáculo de acontecimentos
que compõem a nossa consciência e a consciência que possuímos do valor da vida
e do que realmente importa, ou nos devia ter importado, nesta jornada contínua.
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