segunda-feira, 16 de abril de 2018

"Os Despojos do Dia" de Kazuo Ishiguro



– Devo depreender que, depois dos muitos anos de serviço que dei a esta casa, o senhor não tem mais nada para dizer, depois de o informar da minha possível partida, do que as palavras que acaba de proferir?
– Miss Kenton, tem as minhas mais calorosas felicitações. Mas, repito, lá em cima estão a suceder coisas de importância global e tenho de voltar para o meu posto.
                                                                                                                       p.221

Não tenho por hábito dar muita atenção aos laureados com o Prémio Nobel da Literatura. Não ponho em causa o mérito e, sem dúvida, a qualidade da escrita de vários vencedores. Simplesmente, não creio que seja salutar esperar ansiosamente a nomeação, quase como quem espera o resultado de uma eleição política nacional (só lhes faltam as bandeirinhas e os slogans partidários), e correr às livrarias para comprar um romance, um conto, uma peça de teatro, as mais das vezes publicados há anos, e que nunca antes nos suscitou o mínimo interesse. Kazuo Ishiguro, todavia, marcou a diferença. Desconhecia por completo, confesso, o autor e a obra. No entanto, chamou-me a atenção um dos seus primeiros romances, Os Despojos do Dia.
 
Kazuo Ishiguro (n. 1954), Prémio Nobel da Literatura 2017

Trata-se de uma espécie de diário de reminiscências, de recordações, do passado de um mordomo, Stevens, de uma grande casa senhorial inglesa, Darlington Hall, enquanto empreende a sua primeira viagem recreativa pelo interior de Inglaterra, para visitar o amor de uma vida, amor platónico, nunca confessado, Mrs Benn, que teima em apresentar pelo nome de solteira, Miss Kenton. Quanto mais não fosse por este livro, Ishiguro mereceu bem o reconhecimento do Nobel. Impressionou-me sobremaneira como consegue dar forma a todo o longo debitar incessante de palavras que brotam da mente, e da consciência, de Stevens na sua demanda pela justificação de uma vida que tardiamente entende desperdiçada, da sua dignidade e imolar do reconhecimento da figura do pai, também mordomo, à qual tudo devotou. Stevens, que não deixa de me recordar Mr. Satterthwaite, da obra de Agatha Christie, O Misterioso Mr. Quin, é um perfeito cavalheiro: levou a vida toda a aperfeiçoar esse papel apenas para descobrir as suas tremendas fragilidades, sempre à espreita, sob a fina película de polimento britânico, que o levam à, cada vez mais firme, certeza de a ter desperdiçado por um ideal vazio e despojado de sentido. É impossível não encontrar nesta demanda traços ou semelhanças com a vida de cada um de nós, meros mortais, errando inconscientemente pela selva azafamada do mundo moderno. Com Stevens, apercebemo-nos de que somos todos, a dada altura, mordomos dedicados a algo e, o que é pior, a alguém que nos suga o viço dos nossos melhores anos a troco de uma certa quantia mensal.

 
The Remains of the Day (1993), realizado por James Ivory

Aquilo que contribui muito para o encanto de Ishiguro é, sem dúvida, o seu estilo, um misto da leveza e elegância narrativa de Scott Fitzgerald com a profundidade psicológica de Stendhal. Só através do combinar destes elementos podemos aceder àquilo que o autor chama a “textura da memória”, receptáculo de acontecimentos que compõem a nossa consciência e a consciência que possuímos do valor da vida e do que realmente importa, ou nos devia ter importado, nesta jornada contínua.

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