segunda-feira, 12 de outubro de 2020

"O Essencial Sobre Agostinho da Silva" de Romana Valente Pinho

 

O Essencial sobre o Essencial

É um defeito crónico de Portugal apenas dar importância a alguém após a sua morte. É um defeito português ainda maior a cultura das efemérides, isto é, apenas subsidiar investigação sobre um dado tema cultural e/ou científico em tempos de comemoração de centenários do nascimento ou falecimento de um autor. O Essencial sobre Agostinho da Silva é disso exemplo, surgindo em Março de 2006, no centenário do nascimento de Agostinho da Silva (13/2/1906), e tratando-se, na verdade, de uma entre um pequeno punhado de obras publicadas sobre o filósofo português.

Quanto à obra em questão, está inserida no âmbito da colecção “O Essencial sobre…” (publicação n.º 83), criada em 1980 pelo então director das edições da INCM (Imprensa Nacional-Casa da Moeda), Vasco Graça Moura, que tantos bons frutos deu já à cultura portuguesa. Catorze anos volvidos, mantém-se a melhor introdução a Agostinho, fornecendo um conjunto de análises e materiais passíveis de uma primeira abordagem satisfatória do pensamento multifacetado do filósofo luso.

 

Agostinho da Silva (1906-1994)

O Essencial abre com um breve percurso biográfico, segmentado pelos três grandes momentos da vida de Agostinho: a sua formação universitária e actividade lectiva até ao exílio, em 1944; a estadia na América do Sul, sobretudo no Brasil, até 1969, que irá expandir os seus horizontes filosóficos; e o retorno a Portugal, em plena primavera marcelista, em que se dedica à divulgação, por diversos meios, do seu pensamento. Esta resenha é complementada por uma tábua biobibliográfica, que fixa no tempo as datas dos principais acontecimentos da vida de Agostinho e a publicação das suas principais obras.

Num filósofo em que a acção se entrelaça tão profundamente com a teoria, não sendo possível entender a última sem a primeira, esta resenha afigura-se assaz relevante. Alguns factos mais pertinentes são: a formação na primeira Faculdade de Letras da Universidade do Porto, um foco de pensamento livre anti-regime, na Escola Normal Superior, na Sorbonne e no Collège de France; recusa da assinatura da Lei Cabral, que proibia a pertença de funcionários públicos a associações secretas; acções de divulgação de conhecimento por todo o país nos anos 1930, nomeadamente a publicação dos Cadernos de Informação Cultural e das Biografias; prisão política no Aljube em 1944; acção cultural no Brasil, com a criação da Universidade Federal de Santa Catarina, do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade Federal da Bahia, da Universidade de Brasília e do seu Centro Brasileiro de Estudos Portugueses; acção de difusão da sua obra junto do público português e participação no programa televisivo Conversas Vadias.

 

A Trindade do Pensamento Agostiniano

 
 

Todavia, o grosso da atenção de Romana Valente Pinho recai na explanação e análise das linhas essenciais do pensamento pluridimensional agostiniano, centradas à volta de três vertentes: a educação, acção político-cultural, e reflexões filosófico-religiosas. A educação foi, na verdade, uma das primeiras preocupações de Agostinho, com a qual teve contacto directo logo após a conclusão da licenciatura e o ingresso na docência no ensino liceal. Será, contudo, a amizade que trava com António Sérgio, em Paris, que influenciará decisivamente as suas ideias em relação a este tema. Partindo da visão clássica gnóstica, Agostinho alargará a fórmula sergiana de uma “escola útil para a vida”[1] para aqueloutra, a “escola é vida” (PINHO, p. 28). Adoptando a concepção cooperativista da sociedade e do homem como alternativa ao capitalismo e a sua concepção competitiva dos vários elementos do corpus social, Agostinho da Silva entenderá a Escola como o ponto de encontro dessa acção cooperativa. 

 

António Sérgio (1883-1969)

A Escola deve ser o agente livre potenciador do desenvolvimento humano, em que cesse de vez o binómio mestre/alunos, substituindo-o pelo princípio igualitário do mestre como guiador dos desejos de aprendizagem dos seus alunos, retirando-lhe a autoridade patriarcal em prol de uma acção nutritiva da essência de cada um dos seus educandos. Para tal, devem rasgar-se os programas lectivos convencionais e chamar as artes e os ofícios para a Escola, permitindo um contacto directo da criança com os vários saberes manuais, artesanais, funcionais e artísticos, em que a escrita e os conhecimentos intelectuais são nivelados no mesmo patamar que o conhecimento prático, e não por mútua oposição, como actualmente.

Para Agostinho, a Escola é, assim, um receptáculo da vida, o lugar no qual às capacidades e à essência inata, única no mundo, de cada criança é dada rédea solta para florescerem, levando, também, consigo a eterna busca e aprendizagem gnóstica, como referencial de existência. Indissociável desta concepção da Escola, está a agostiniana Regra dos 3 S’s: 1) Sustento, ter assegurada a sua alimentação e não viver na horrível miséria de acordar de manhã e não saber se, à noite, terá o que comer; 2) Saber, uma arte, um curso, algo que lhe permita desenvolver uma profissão e ganhar a vida; 3) Saúde, acesso universal a cuidados básicos e avançados, quando necessários, de saúde.

 

Antero de Quental (1842-1891)

Admirador de Antero de Quental, Agostinho rever-se-á na crítica político-cultural das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Porém, se concorda com as causas, discorda das soluções apontadas por Antero: a emulação do modelo político-económico dos países da Reforma protestante. A acção político-cultural de Agostinho centrar-se-á na reflexão à volta da portugalidade e, num sentido mais amplo, da lusofonia. Ao contrário de Antero, não crê que a solução seja a tentativa de correr atrás dos modelos europeus, que considera gastos e em decadência. Para Agostinho, o futuro de Portugal reside, num primeiro momento, reencontrar-se consigo próprio, e, num segundo momento, voltar a unir-se aos países de expressão lusófona, com vista a oferecer ao mundo um novo modelo político-cultural, capaz de mitigar os males e as injustiças do mundo.

Neste sentido, o modelo político a reter será a monarquia portuguesa da Idade Média, pré-Descobrimentos: um rei eleito pelo povo, baseado na aclamação de Dom Afonso Henriques pelos seus soldados no final da batalha de Ourique; o país descentralizado em municípios autogeridos por instituições democráticas bem regulamentadas; o poder régio não só concedido pelo povo mas também dependente da auscultação da sua vontade perante as principais decisões de política económica, justiça, administração interna e relações internacionais em sede de Cortes; um mandato régio vitalício, contudo passível de ser revogado em caso de gestão grosseira das suas prerrogativas. No fundo, um misto de monarquia e república. Posteriormente à instituição deste sistema político português autêntico, a missão nacional seria a formação de uma comunidade lusófona, para a propagação deste modelo pelo mundo.

Subjacente às vertentes anteriores, estão as reflexões filosófico-religiosas agostinianas, sobretudo a sua concepção de Deus e o culto do Espírito Santo. Pese embora as fontes filosófico-teológicas a que Agostinho foi beber sejam diversas, contando-se entre elas Platão, Pseudo-Dioniso, Nicolau de Cusa, Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Hegel, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, as principais são indubitavelmente Joaquim de Fiore, Espinosa e Lao Tzu.

 

Espinosa (1632-1677)

De Espinosa vai buscar a ideia de que “tudo o que existe, existe em Deus, […] tudo o que existe é Deus sendo, e que Deus é a causa primeira de tudo; Deus determina tudo o que existe” (PINHO, p. 70). Por sua vez, de Lao Tzu, do taoísmo e do budismo-zen vai adquirir a noção de que Deus é simultaneamente Tudo e Nada, assim “Deus, para além de ser (o) Nada, pode também Ele próprio ser fruto da acção primacial e fundante dessa Entidade Originária (Nada), [… logo] Deus é Nada, porque Tudo é, mas, sobretudo, porque participa do Nada – fundo primevo e final de Tudo” (PINHO, p. 68).

Juntando estas ideias e interpretando-as de uma forma muito sua, Agostinho concebe Deus como o Deus-Paradoxo, o eterno ser, ou entidade, por definição indefinível e incomensurável, tanto transcendente, superior e para além de qualquer compreensão humana, como imanente, a causa em si mesma, constituindo, ao mesmo tempo, o Paradoxo e a resolução paradoxal.

 

Lao Tzu a Conduzir um Búfalo, por Zhang Lu

Com base nesta definição heterodoxa e anticonvencional da divindade, Agostinho da Silva é permeável à teologia de Joaquim de Fiore e a ela, e ao entendimento que desta tiveram o rei D.Dinis e a rainha D. Isabel, no final do século XIII, quando criaram o culto popular do Espírito Santo, subordinará todo o seu pensamento. Isto é, tanto a sua vertente educacional como a político-cultural estão alocadas à, e constituem-se como ramos da, sua concepção, e crença, no culto do Espírito Santo joaquimita.

Para Agostinho, o Espírito Santo será encarnado pelo poder redentor da Criança, pois as crianças representam para ele a idade da inocência e da pureza, em que estamos mais perto daquilo que é a sua essência, “(…) infância, período único em que, para si, o Homem verdadeiramente é” (MANSO, 2009, p. 73)[2]. Significa isto que o Homem está mais perto do Ser, em criança, isto é, existe simplesmente, não pensa, não actua de forma auto-imposta ou condicionada pela sociedade, e, ao Ser, está em contacto com aquilo que representa o seu carácter único e irrepetível, logo, para alcançarmos essa unidade e poder transmiti-la ao mundo, devemos imitar as Crianças, não podemos deixar morrer a nossa Criança interior, porque mata-la é um suicídio interior. É por isso que a vertente educacional, e a Escola em particular, são tão importantes para Agostinho, é preciso não deixar morrer a curiosidade interminável da Criança dentro de cada um de nós. O ensino deve ser revolucionado e o professor deve estar inteiramente disponível para ensinar aquilo que as pessoas quiserem aprender. Os currículos escolares pré-definidos devem ser abolidos, o critério para as aulas é simplesmente a curiosidade infindável do Eu Criança, avisando o professor, com pelo menos um dia de antecedência daquilo que quer aprender, para lhe dar tempo, caso não saiba, de aprender primeiro e poder ensinar-lhe depois, seja a ler ou escrever, seja a construir uma cadeira, ou aprender a desenhar. O saber deve ser múltiplo e livre, não deve ser confinado às estreitas vistas da Ciência, das Letras, da Filosofia ou Matemática.

 

Joaquim de Fiore (1135-1202)

Adicionalmente, o Espírito Santo afirma-se como a vivência plena da liberdade, de uma vida gratuita, para o qual o Homem verdadeiramente nasce, livre da luta pela sobrevivência, da competição económica entre indivíduos, empresas, Estados, que mantêm as pessoas numa condição constante de escravatura, escravatura do trabalho, do salário, e sempre em regime de alerta. Assim sendo, o regime político-económico perfeito é o regime que potencia a vinda do Espírito Santo e o torna uma realidade palpável, que coloca o Homem no centro da questão e o liberta dos seus condicionalismos circunstanciais, não o reduzindo cada vez mais ao sucedâneo de si mesmo, mero produto incompleto, não-assimilado e alienado para o qual as sociedades capitalistas e neoliberais tendem a caminhar.

Agostinho entende que, com o avanço inevitável da economia em direcção à robotização, mais e mais empregos serão destruídos. A sua opção é criar um sistema progressivo de robotização da economia, comunitária e cooperativamente gerido, de forma a libertar o máximo possível de pessoas da obrigatoriedade de trabalhar, reduzindo a um absoluto mínimo o trabalho humano, de forma a que toda a gente possa usufruir da sua liberdade para criar. O futuro deve ser, assim, gratuito e o homem deve ser livre de forma a poder desenvolver-se pessoalmente, desenvolver a sua capacidade criadora e perceber o carácter único e irrepetível da sua essência, de modo a poder transmiti-lo ao mundo, como afirma num dos seus livros:

 

“Mas é preciso querer nitidamente não fazer nada, não é abandonar-se ao não fazer nada, é não querer fazer nada mesmo! Ter a profissão de não querer fazer nada. (...) Temos que pensar numa economia, numa sociedade, em que qualquer tipo seja reformado à nascença. E saiba imediatamente, se puder entender, que quem não faz nada morre depressa. E que, portanto, procure naquilo que é, naquilo que sente do mundo, o que é que gostaria de fazer. As duas leis devem ser: «Não trabalhe nunca; por favor esteja sempre ocupado».” (SILVA, p. 14)[3].

 

Crítica de Fontes

 

A finalizar a obra, Romana Valente Pinho insere uma síntese bibliográfica que, se bem que contenha apenas uma pequena parte da obra do autor, o absoluto mínimo essencial do pensamento agostiniano, redirecciona correctamente para a edição, em 12 volumes, de parte significativa da produção de Agostinho, Obras de Agostinho da Silva, coordenada por Paulo Borges, através da Âncora Editora, entre 1999 e 2003. A síntese vale, sobretudo, pelas duas páginas de monografias e artigos, bastante escassos, sobre George Agostinho Baptista da Silva.

Não constam desta lista final, compreensivelmente, no caso do primeiro, dada a publicação posterior à concepção do Essencial, e inadmissivelmente quanto às duas últimas: Tempos de Ser Deus (2006, Âncora Editora), de Paulo Borges, uma análise do pensamento agostiniano à luz da sua espiritualidade ecuménica; Agostinho da Silva: Aspectos da Sua Vida, Obra e Pensamento (2000, Estratégias Criativas), de Artur Manso, dedicado ao estudo geral e particular do pensamento do mestre; e Agostinho da Silva, 1906-1994 (2005, Estratégias Criativas), também de Artur Manso, constituindo uma pequena biobibliografia à moda da obra de Romana Valente Pinho, com o mesmo formato reduzido.

Finalmente, para quem estiver interessado, O Essencial Sobre Agostinho da Silva está disponível para download, em formato Pdf, no sítio da Academia/edu, na página que se segue em nota de rodapé[4].



[1] PINHO, Romana Valente (2006) – O Essencial Sobre Agostinho da Silva. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. (O Essencial Sobre, n.º 83).

[2] MANSO, Artur (2009) – A Memória das Origens: Agostinho da Silva e Barca de Alva. Revista Altitude. Guarda: ano LXVIII, n.º 12 (3.ª série), p. 65-73.

[3] SILVA, Agostinho da (1994) – Ir à Índia sem Abandonar Portugal. Lisboa: Assírio & Alvim.