Eça de Queirós é
um homem de surpresas. Tal como um prestidigitador, consegue, a cada passo,
surpreender-me com algo que não esperava, de todo. A Cidade e as Serras não é excepção. Estamos perante a primeira
obra póstuma de Eça, publicada um ano após a sua morte. É uma novela que, creio
não se saber, pelo menos não obtive essa informação, não terá sido revista
pelo autor, logo não sei até que ponto teria sido modificada se fosse dada ao
prelo em vida do próprio. Facto que poderá dar azo a uma certa incompletude, um
certo sentido de esmorecimento que não se espera da escrita possante e viçosa
do Eça de Os Maias.
Acompanhamos Jacinto, descendente de uma antiga família senhorial portuguesa, nascido em
Paris, para onde emigrou seu avô, apaixonado miguelista, exilado de moto
próprio, após a derrota da causa absolutista. Através dele, Eça irá expor
aquilo que acredita serem os males da civilização, capazes de assoberbar tão robusto
homem, ao princípio apaixonado cultor da incessante novidade industrial, que
descamba numa profunda depressão que lhe faz perder o gosto pela vida. Jacinto,
o inovador, aplica a imensa fortuna que possui ao rechear o seu palacete
parisiense com todas as mais recentes comodidades fin de siècle, desde a luz eléctrica à água canalizada,
passando por máquinas de todas as espécies para realizar operações tão simples
como apertar os botões das calças e das botas até à instalação de um elevador.
Jacinto, o poeta, após um longo definhar e extenuar de forças, sob o peso do
saber dos trinta mil livros que reúne e pelo acumular de conforto que o mói,
reencontra a felicidade assim que se instala na ancestral propriedade da
família em Santa Cruz do Douro através da comunhão com a natureza, do
reaprender da vida simples e sã da serra de seus avós, que o fazem ver uma
elegia em cada flor, um encanto em cada prado. Jacinto, o realista,
apercebendo-se da latente pobreza dos rendeiros das suas terras, aplaca-lhes as
dificuldades, atenua-lhes o sofrimento material e físico, num último passo que
o completa como homem, já não o académico da civilização, já não o poeta idílico
da Arcádia virgiliana, mas o simples apreciador dos belos momentos da vida, da
felicidade que lhe traz o casamento, com outra benemérita fidalga campestre, do
preenchimento da vida que os filhos lhe proporcionam.
Num prólogo que
abre uma tradução argentina de O Mandarim,
Jorge Luís Borges escreve: “no ano final do século XIX morreram em Paris dois
homens de génio. Eça de Queirós e Oscar Wilde. Que eu saiba, nunca se
conheceram, mas ter-se-iam entendido admiravelmente”. Entre todas as obras que
já li do autor, esta é aquela em que revejo maior aproximação a Wilde, fruto do
abandono da elaborada crítica do movimento literário do realismo em prol da
defesa da arte como guia do caminho do homem, da arte como solução para a
decadência em que a civilização oitocentista, na óptica de Queirós, afundava o
homem. Por último, mas não menos importante, A Cidade e as Serras é fruto do amor de Eça pela Casa de Tormes,
refúgio do seu crescente desencanto pela vida urbana, sede da fundação que
porta o seu nome.