segunda-feira, 23 de abril de 2018

"A Cidade e as Serras" de Eça de Queirós


Eça de Queirós é um homem de surpresas. Tal como um prestidigitador, consegue, a cada passo, surpreender-me com algo que não esperava, de todo. A Cidade e as Serras não é excepção. Estamos perante a primeira obra póstuma de Eça, publicada um ano após a sua morte. É uma novela que, creio não se saber, pelo menos não obtive essa informação, não terá sido revista pelo autor, logo não sei até que ponto teria sido modificada se fosse dada ao prelo em vida do próprio. Facto que poderá dar azo a uma certa incompletude, um certo sentido de esmorecimento que não se espera da escrita possante e viçosa do Eça de Os Maias.
 
José Maria Eça de Queirós (1845-1900)

Acompanhamos Jacinto, descendente de uma antiga família senhorial portuguesa, nascido em Paris, para onde emigrou seu avô, apaixonado miguelista, exilado de moto próprio, após a derrota da causa absolutista. Através dele, Eça irá expor aquilo que acredita serem os males da civilização, capazes de assoberbar tão robusto homem, ao princípio apaixonado cultor da incessante novidade industrial, que descamba numa profunda depressão que lhe faz perder o gosto pela vida. Jacinto, o inovador, aplica a imensa fortuna que possui ao rechear o seu palacete parisiense com todas as mais recentes comodidades fin de siècle, desde a luz eléctrica à água canalizada, passando por máquinas de todas as espécies para realizar operações tão simples como apertar os botões das calças e das botas até à instalação de um elevador. Jacinto, o poeta, após um longo definhar e extenuar de forças, sob o peso do saber dos trinta mil livros que reúne e pelo acumular de conforto que o mói, reencontra a felicidade assim que se instala na ancestral propriedade da família em Santa Cruz do Douro através da comunhão com a natureza, do reaprender da vida simples e sã da serra de seus avós, que o fazem ver uma elegia em cada flor, um encanto em cada prado. Jacinto, o realista, apercebendo-se da latente pobreza dos rendeiros das suas terras, aplaca-lhes as dificuldades, atenua-lhes o sofrimento material e físico, num último passo que o completa como homem, já não o académico da civilização, já não o poeta idílico da Arcádia virgiliana, mas o simples apreciador dos belos momentos da vida, da felicidade que lhe traz o casamento, com outra benemérita fidalga campestre, do preenchimento da vida que os filhos lhe proporcionam.

 
A Casa de Tormes, fonte de inspiração para A Cidade e as Serras

Num prólogo que abre uma tradução argentina de O Mandarim, Jorge Luís Borges escreve: “no ano final do século XIX morreram em Paris dois homens de génio. Eça de Queirós e Oscar Wilde. Que eu saiba, nunca se conheceram, mas ter-se-iam entendido admiravelmente”. Entre todas as obras que já li do autor, esta é aquela em que revejo maior aproximação a Wilde, fruto do abandono da elaborada crítica do movimento literário do realismo em prol da defesa da arte como guia do caminho do homem, da arte como solução para a decadência em que a civilização oitocentista, na óptica de Queirós, afundava o homem. Por último, mas não menos importante, A Cidade e as Serras é fruto do amor de Eça pela Casa de Tormes, refúgio do seu crescente desencanto pela vida urbana, sede da fundação que porta o seu nome.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

"Os Despojos do Dia" de Kazuo Ishiguro



– Devo depreender que, depois dos muitos anos de serviço que dei a esta casa, o senhor não tem mais nada para dizer, depois de o informar da minha possível partida, do que as palavras que acaba de proferir?
– Miss Kenton, tem as minhas mais calorosas felicitações. Mas, repito, lá em cima estão a suceder coisas de importância global e tenho de voltar para o meu posto.
                                                                                                                       p.221

Não tenho por hábito dar muita atenção aos laureados com o Prémio Nobel da Literatura. Não ponho em causa o mérito e, sem dúvida, a qualidade da escrita de vários vencedores. Simplesmente, não creio que seja salutar esperar ansiosamente a nomeação, quase como quem espera o resultado de uma eleição política nacional (só lhes faltam as bandeirinhas e os slogans partidários), e correr às livrarias para comprar um romance, um conto, uma peça de teatro, as mais das vezes publicados há anos, e que nunca antes nos suscitou o mínimo interesse. Kazuo Ishiguro, todavia, marcou a diferença. Desconhecia por completo, confesso, o autor e a obra. No entanto, chamou-me a atenção um dos seus primeiros romances, Os Despojos do Dia.
 
Kazuo Ishiguro (n. 1954), Prémio Nobel da Literatura 2017

Trata-se de uma espécie de diário de reminiscências, de recordações, do passado de um mordomo, Stevens, de uma grande casa senhorial inglesa, Darlington Hall, enquanto empreende a sua primeira viagem recreativa pelo interior de Inglaterra, para visitar o amor de uma vida, amor platónico, nunca confessado, Mrs Benn, que teima em apresentar pelo nome de solteira, Miss Kenton. Quanto mais não fosse por este livro, Ishiguro mereceu bem o reconhecimento do Nobel. Impressionou-me sobremaneira como consegue dar forma a todo o longo debitar incessante de palavras que brotam da mente, e da consciência, de Stevens na sua demanda pela justificação de uma vida que tardiamente entende desperdiçada, da sua dignidade e imolar do reconhecimento da figura do pai, também mordomo, à qual tudo devotou. Stevens, que não deixa de me recordar Mr. Satterthwaite, da obra de Agatha Christie, O Misterioso Mr. Quin, é um perfeito cavalheiro: levou a vida toda a aperfeiçoar esse papel apenas para descobrir as suas tremendas fragilidades, sempre à espreita, sob a fina película de polimento britânico, que o levam à, cada vez mais firme, certeza de a ter desperdiçado por um ideal vazio e despojado de sentido. É impossível não encontrar nesta demanda traços ou semelhanças com a vida de cada um de nós, meros mortais, errando inconscientemente pela selva azafamada do mundo moderno. Com Stevens, apercebemo-nos de que somos todos, a dada altura, mordomos dedicados a algo e, o que é pior, a alguém que nos suga o viço dos nossos melhores anos a troco de uma certa quantia mensal.

 
The Remains of the Day (1993), realizado por James Ivory

Aquilo que contribui muito para o encanto de Ishiguro é, sem dúvida, o seu estilo, um misto da leveza e elegância narrativa de Scott Fitzgerald com a profundidade psicológica de Stendhal. Só através do combinar destes elementos podemos aceder àquilo que o autor chama a “textura da memória”, receptáculo de acontecimentos que compõem a nossa consciência e a consciência que possuímos do valor da vida e do que realmente importa, ou nos devia ter importado, nesta jornada contínua.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

"A História de Kullervo" de J. R. R. Tolkien


Depois da redundância literária que foi Os Filhos de Húrin, o recontar, pela terceira vez, de uma história já incluída em O Silmarillion e aprofundada nos Contos Inacabados. Uma vez mais, a história repete-se. Mais um livro de Tolkien, publicado a partir do vasculhar dos papéis do autor, legados à biblioteca da Universidade de Oxford, e mais uma desilusão. Trata-se de um conto, a primeira incursão de J. R. R. Tolkien no género fantástico, facto que me atraiu sobremaneira. Contudo, depressa nos apercebemos de que algo vai mal. Afinal não é um conto de Tolkien, apenas um recontar de uma história pertencente ao épico do folclore finlandês, Kalevala. O conto está incompleto, foi abandonado quando o autor se alistou no exército para combater na Primeira Guerra Mundial, o que deixa ainda mais a desejar. Como cereja no topo do bolo, seguem-se dois ensaios, transcrições de palestras dadas sobre a Kalevala pelo próprio Tolkien, que se vem a descobrir serem pura e simplesmente o mesmo ensaio, um na sua versão manuscrita, completo, o outro na sua versão dactilografada, um pouco mais desenvolvido, mas por terminar. A rematar, um novo ensaio, desta feita da lavra da editora do material original, Verlyn Flieger.

Tolkien (1892-1973) em uniforme militar

Ao contrário de Pessoa, de cujos baús ainda hoje se desencantam poemas, ensaios, guiões de cinema, policiais, entre outros, completos e inéditos, Tolkien não possui baús da mesma estirpe, está mais do que provado. Insistir no contrário é uma indigna exploração do filão editorial que se veio a revelar ser O Hobbit, O Senhor dos Anéis e O Silmarillion. Compreendo a publicação por motivações académicas, de forma a disponibilizar material de investigação aos estudiosos da obra e dos processos literários do autor. Esta edição, todavia, tem precisamente a motivação contrária, afirmada no prefácio, dado já existir uma edição académica de A História de Kullervo.
 
Kalevala (1835), a inspiração para Tolkien

Pessoalmente, apenas o ensaio final veio salvar a leitura, de outra forma, truncada e redundante. Tomei nota de algumas das fundamentações biográficas para o maravilhamento de Tolkien pelo folclore finlandês, e a sua identificação com Kullervo, personagem de uma certa monta na Kalevala, cujo resultado foi a inspiração criativa do que viria a ser o seu próprio trabalho de fantasia. Kalevala, que apenas conhecia de nome por a ter visto publicada, nos tempos de faculdade, pela Dom Quixote, numa tradução directa do original, tão importante para Tolkien que planeou criar uma “mitologia para a Inglaterra”, na falta de semelhante corpus folclórico anglo-saxão. Kalevala, que levou à A História de Kullervo, inspiração para Túrin, personagem de concepção primeva que levou à criação de todo O Silmarillion para o enquadrar, Silmarillion que abriu as portas para O Hobbit e O Senhor dos Anéis.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

"Mistérios de Lisboa" de Camilo Castelo Branco


Trata-se do primeiro sucesso literário de Camilo Castelo Branco, e logo ao segundo livro que escreveu. Aqui estão contidos todos os elementos que vieram popularizar Camilo: a acção acelerada, predominando sobre os momentos descritivos, preenchida com uma verdadeira plêiade de palavras retiradas do dicionário que, como Voltaire, diz-se que lia todos os dias, mas que acrescentam pitoresco à narrativa, grande poder imaginativo e pujança na escrita. 

Camilo Castelo Branco (1825-1890)

Ao contrário de Eça, o seu grande rival, Camilo é um homem de acção, foi-o na vida, basta ver a sua biografia, desde a participação nas guerras civis entre absolutistas e liberais até às diversas polémicas em que esteve envolvido, não poucas criadas por ele, e é-o na literatura. Esse elemento está muito presente nos Mistérios de Lisboa e é, na minha opinião, parte da causa do seu estrondoso sucesso, ao ponto de ter sido o escritor português mais vendido do século XIX. Com todas as suas imperfeições e excessos, o seu conservadorismo político – é importante não esquecer que chegou a ser absolutista, na juventude –, o seu catolicismo clássico, com tudo o que tem de culpa, expiação, condenação divina e juízo final, que é, nunca é demais relembrar, o grande conector das várias histórias interligadas na obra, Camilo revela-se humano e reconhecidamente terreno. Agrada-me o sentido que nele há de todas essas imperfeições e de como, apesar delas, ou talvez por causa delas, o seu génio ainda hoje nos arrebatar.
 
Anúncio da publicação em folhetim de Mistérios de Paris
Não obstante a ideia subjacente a este romance não ser nada de inovador, Mistérios de Lisboa (1854) é um claro subsidiário dos Mistérios de Paris (1843), de Eugène Sue, cerca de uma década seu predecessor, há aqui algo de particular que justifica a sua originalidade. Esse algo, creio, é uma certa intuição da alma portuguesa. Castelo Branco intui aquilo que a alma portuguesa tem de profundamente humanitário, de livre, mas também de fatalidade, de saudade e coragem na desgraça, seguindo a interpretação que aponta Agostinho da Silva. A juntar a isto, estilisticamente, revejo em Camilo algo de Victor Hugo, no seu sentido do monumental, que ainda não me tinha apercebido nas suas novelas, forçosamente mais pequenas, sempre unido ao seu quixotismo, que o próprio arvorou para si, que tão deliciosamente nos faz rir.