quinta-feira, 28 de março de 2019

"Só" de António Nobre

A lírica comporta uma liberdade expressiva de sentimentos, emoções, estados de espírito e devaneios que a tornam particularmente difícil de glosar quando se trata, não apenas de um poema, mas de um livro de poesia. A origem dessa liberdade remonta, estou certo, ao próprio nascimento da lírica, poesia composta para ser declamada ao som ritmado da lira, na Grécia antiga (consultar a crítica dos Sonetos Completos, de Antero de Quental, para um comentário mais aprofundado). Em nenhum outro poeta português do século XIX se sente mais a fruição dessa liberdade, delicadamente musicada aos nossos ouvidos, do que em António Nobre. A atestá-lo está a opinião de personalidades tão díspares como Sampaio Bruno, que elogia o seu “fulgor divino” (Despedidas, p.VI); e Fernando Pessoa, que considera Nobre como o “primeiro a pôr em europeu este sentimento português das almas e das coisas”, isto é, da corporização dos espíritos e da humanização dos seres vivos e dos seres inanimados, partindo dele, assim, “todas as palavras com sentido lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas” («Para a Memória de António Nobre» in Textos de Crítica e de Intervenção, p.115).
 
António Nobre (1867-1900), nascido no Porto, na Rua de Santa Catarina
Começando a escrever aos catorze anos, Nobre foi publicando poemas avulsos em jornais e revistas literárias. De longa data preparava já um livro que reunisse a sua poesia, sucessivamente adiado por imprevistos pessoais e por pruridos da sua estética ainda em metamorfose. O será simultaneamente o culminar desse projecto e a única obra publicada em vida. Lançado na cidade de Paris, em 1892, a sua edição foi levada a cabo por Léon Vanier, o editor dos poetas do movimento simbolista: Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé. Não é por acaso. Nobre tinha rumado a França, em 1890, para frequentar o curso de Direito na Sorbonne. Habitando no Quartier Latin (Bairro Latino), próximo da universidade, trava conhecimento com os protagonistas deste novo movimento literário, que tanto o influenciará. De Verlaine, absorve a imagética simbólica da fatalidade, das forças inconscientes e dos fenómenos irracionais, como o sonho e o delírio tísico, deixando de lado a obscenidade. Bem assim, apreende-lhe, tal como a Mallarmé, a nova estética da musicalidade e do ritmo do canto lírico.
 
Paul Verlaine (1844-1896)
Paralelamente, persistem em Nobre reminiscências do satanismo poético de Baudelaire, filtradas através de Antero de Quental, poeta acerca do qual foi o primeiro a prestar culto, “quero/mas é ir à Ilha orar sobre a cova do Antero” (, p.167). As influências anterianas não se findam aqui. Câmara Reis aponta o soneto «A Alberto Teles», particularmente o verso “Só! – Ao ermita sozinho na montanha” (Sonetos Completos, p.106), como a inspiração para o título da obra de António Nobre.

O contém seis grandes composições poéticas, nomeadamente «António», «Lusitânia no Bairro Latino», «Entre Douro e Minho», «Lua-Cheia», «Lua Quarto-Minguante», «Males de Anto» (entenda-se, António), bem como duas colecções, uma de sonetos, outra de elegias. Toda a obra denota uma vincada tendência para a exploração de temas autobiográficos, associando as suas atribulações de espírito aos males de Portugal – então a atravessar a crise final da monarquia proveniente do Ultimato britânico de 1890 e da bancarrota de 1892 – Nobre afirma “queixa-se o meu editor e todos que falo só de mim. Mas não sou eu o intérprete das dores do meu país?” (, p.55). Deste modo, são temas recorrentes os desgostos que sofreu em Coimbra, com as praxes académicas a importuna-lo particularmente devido ao aspecto byroniano da sua indumentária, e as reprovações que o levaram à emigração para Paris, de modo a concluir a licenciatura em Direito. O sentimento de exclusão, que o faz entender a emigração como um exílio, foi apenas agravado pelas dificuldades económicas por que passou em França, acabando por desenvolver um desânimo pungente. Paradoxalmente, este exílio reaproxima-o do país. A distância leva-o a amar a pátria, dando origem a um saudosismo muito característico, apologético do Portugal provinciano, das festas e romarias e da sabedoria popular. Fundado num redescobrir do Garrett das Viagens na Minha Terra, nome que dá a um dos poemas do , este saudosismo lírico será a grande inspiração de Teixeira de Pascoaes.
 
Teixeira de Pascoaes (1877-1952)
Dá-se em António Nobre o consubstanciar de uma máxima de Oscar Wilde, “a literatura antecipa-se sempre à vida” (Pensamentos, p.133). Em conjunto com os contratempos vividos, Nobre versa sobre os desgostos amorosos de que se imagina alvo, concebendo de si próprio uma imagem de eterno menino e moço, ao qual estão vedados o matrimónio, a felicidade conjugal e a completude da sua personalidade. Devido a uma certa sensibilidade latente, a sua poesia está atenta às figuras mais desgraçadas da sociedade, os cegos, os estropiados e os tísicos, com quem se identifica. Estabelece, assim, toda uma genealogia de presságios, partindo do berço, que intui sob um signo funesto, até à sua condição de excluído, do país, da sociedade, da vida. A realidade viria a confirmar a lírica. Em 1895, António Nobre descobre que sofre de tuberculose, sem dúvida devido à penúria experienciada em Paris, a tísica que tanto glosou no . Como consequência da doença, que, na época, representava uma sentença de morte, dá-se a ruptura do noivado que mantinha com Margarida de Lucena. Acaba por falecer em 1900, tinha apenas trinta e dois anos.


Referências



NOBRE, António (1902) – Despedidas: 1895-1899. Prefácio de José Pereira de Sampaio (Bruno). Porto: s.n. Disponível online em: https://www.gutenberg.org/files/27535/27535-h/27535-h.htm [Consultado a 27-03-2019]. 



PESSOA, Fernando (1980) – Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática.


NOBRE, António (1989) – . Lisboa: Ulisseia. (Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, n.º 29). 


QUENTAL, Antero (2002) – Sonetos Completos. Lisboa: Ulisseia. (Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, n.º 48).


WILDE, Oscar (2011) – Pensamentos. Lisboa: Relógio D’Água Editores.