domingo, 25 de março de 2018

Mais Um Blogue de Literatura?


Março de 2018. O ano ainda mal começou e já outro blogue dedicado à literatura emerge das cinzas, sempre prolíficas, da Internet. Fará sentido ser criado mais um? No meio de tantos outros dedicados a este tema, o que virá acrescentar? No fundo, para que serve afinal um blogue de literatura?

Num mundo repleto de «opinion makers» qual o valor da opinião? Zygmunt Bauman abriu-nos as portas a uma nova perspectiva deste problema. Vivemos numa sociedade líquida, em perpétua e extenuante mudança, sem tempo para parar e reflectir, ao sabor de modas – já não circunscritas às difundidas pelas grandes indústrias, corporações de média ou outras estruturas organizadas – que, cada vez mais, são fruto de anónimos utilizando a Internet e as redes sociais, como veículos com vista à promoção pessoal, para fidelizar um vasto público que os toma como ídolos e os tenta imolar. Nesta liquefacção, o valor da opinião dilui-se num nada diletante e comezinho em jeito de desabafo resumido nos 280 caracteres de um tweet. Estamos a caminhar para uma perigosa circunstância em que, por meio de algoritmos informáticos que canalizam a informação e a opinião galopantes, nos é apresentado apenas aquilo que queremos ver, aquilo que poderão ser os nossos simples interesses ou preocupações e tudo o resto morre numa surda e quase imperceptível censura new age, mais insidiosa que a do passado porque anónima, e mais perigosa porque tendendo para o absoluto das nossas vidas, transversal a tudo o que consumimos.  

É perante esta realidade que a literatura poderá, na minha opinião, representar um meio para, senão resolver, pelo menos atenuar as referidas tendências. Não importa o facto de ser ficção. Afinal de contas, Oscar Wilde tinha razão: a vida imita a arte e não o seu contrário. Quantas vezes pensamentos ou divagações sonhadoras expostas na literatura não vieram a consubstanciar-se? O exemplo mais óbvio é a obra de Júlio Verne, com a intuição do submarino nas Vinte Mil Léguas Submarinas e a premonição das viagens espaciais em Da Terra à Lua, e ficamos por aqui. A literatura possibilita-nos cultivar o contacto com o outro. Não importa que esse outro tente ser fielmente retratado pela arte ou que seja pura e simplesmente inventado. É outro por puro gesto de criação. Cabe-nos a nós a pretensão de conhecermos algum dia a totalidade do género humano e provar, desta forma, que tal e tal personagens são um devaneio? Não importa, porque mesmo nesse devaneio existe a presença de alguém senciente, que pulsa, debate-se e vive, invocado pela expressão artística de um escritor. É só através do contacto com o outro que melhor nos definimos. Esse contacto implica sair da nossa área de conforto e defrontarmo-nos com outras realidades sociais, económicas, políticas, outras formas de sentir, de pensar, outras mundividências que nos obrigam a perceber, pouco a pouco, qual a nossa realidade. Mirarmo-nos ao espelho é benéfico até ao ponto em que apreendemos o sentido de nós próprios, faze-lo perpetuamente é a esterilidade narcísica que cega a nossa humanidade latente. Ler, ficção e não-ficção, é, portanto, extravasar os limites do eu, contactar com outros seres, com a sua imaginação, o seu sentir, rasgar as censuras auto-impostas e externas, sair da linha traçada, pelas circunstâncias que conjugaram o nascimento de cada um, para a sua vida com vista à completude pessoal.

Tal como a história, a literatura exige uma constante reinterpretação. A história não se fina na concepção positivista ultrapassada de colecção de factos históricos numa imensa torre de babel devidamente explicada e catalogada para memória futura e assombro civilizacional. Concepção resumida no niilismo singelo “a história está toda, ou quase toda, escrita”. Assim como cada geração deve olhar para o passado, e reinterpreta-lo numa tentativa constante de auto-análise, deve faze-lo também com a literatura, com a liberdade que lhe permite o mais facilitado acesso ao material literário do que ao histórico. É esta liberdade de meios e esta necessidade de sentido interpretativo que, na minha óptica, justificam a existência de um blogue literário. E, porque essa interpretação deve ser múltipla, derivada da perspectiva de cada um com vista à melhor apreensão de significados creio justificada a criação do meu blogue. Poderá ser apenas uma gota no meio de um oceano, mas é a minha gota e humildemente a faço cair nesse mar oceano.

O título do blogue, Literatura à Solta, deve-se à adaptação da máxima de um filósofo português que tento seguir na minha vida. Agostinho da Silva afirmava, com convicção, “o homem nasce para criar, para ser poeta à solta”. Creio que é pouco ouvido, e ainda menos seguido, nos dias de hoje. Aquilo que Agostinho queria dizer é que o homem não se esgota no trabalho necessário à sobrevivência, sua e da espécie humana. Nasceu, isso sim, para atingir o desenvolvimento ideal das suas capacidades, gostos e sensibilidades de forma a criar, a dar ao mundo aquilo que só ele, pela unicidade que representa no universo o seu simples nascimento, poderá acrescentar. Não sei até que ponto a minha missão no mundo passa pela divulgação literária, mas reclamo-me do ser poeta à solta para a realizar. O Literatura à Solta irá acompanhar o percurso das minhas leituras com tentativas de interpretação de cada livro terminado, a publicação ocasional de excertos literários com os quais me identifico ou que simplesmente me fazem pensar, e a declamação dos poemas que têm vindo a marcar a minha vida. De resto, reservo a liberdade que o próprio título me concede para, sempre que assim o entender, extravasar estes limites.