Março de 2018. O
ano ainda mal começou e já outro blogue dedicado à literatura emerge das
cinzas, sempre prolíficas, da Internet. Fará sentido ser criado mais um? No
meio de tantos outros dedicados a este tema, o que virá acrescentar? No fundo,
para que serve afinal um blogue de literatura?
Num mundo
repleto de «opinion makers» qual o valor da opinião? Zygmunt Bauman
abriu-nos as portas a uma nova perspectiva deste problema. Vivemos numa
sociedade líquida, em perpétua e extenuante mudança, sem tempo para parar e
reflectir, ao sabor de modas – já não circunscritas às difundidas pelas grandes
indústrias, corporações de média ou outras estruturas organizadas – que, cada
vez mais, são fruto de anónimos utilizando a Internet e as redes sociais, como
veículos com vista à promoção pessoal, para fidelizar um vasto público que os
toma como ídolos e os tenta imolar. Nesta liquefacção, o valor da opinião
dilui-se num nada diletante e comezinho em jeito de desabafo resumido nos 280
caracteres de um tweet. Estamos a
caminhar para uma perigosa circunstância em que, por meio de algoritmos informáticos
que canalizam a informação e a opinião galopantes, nos é apresentado apenas
aquilo que queremos ver, aquilo que poderão ser os nossos simples interesses ou
preocupações e tudo o resto morre numa surda e quase imperceptível censura new age, mais insidiosa que a do passado
porque anónima, e mais perigosa porque tendendo para o absoluto das nossas
vidas, transversal a tudo o que consumimos.
É perante esta
realidade que a literatura poderá, na minha opinião, representar um meio para,
senão resolver, pelo menos atenuar as referidas tendências. Não importa o facto
de ser ficção. Afinal de contas, Oscar Wilde tinha razão: a vida imita a arte e
não o seu contrário. Quantas vezes pensamentos ou divagações sonhadoras
expostas na literatura não vieram a consubstanciar-se? O exemplo mais óbvio é a
obra de Júlio Verne, com a intuição do submarino nas Vinte Mil Léguas Submarinas e a premonição das viagens espaciais em Da Terra à Lua, e ficamos por aqui. A literatura possibilita-nos cultivar
o contacto com o outro. Não importa que esse outro tente ser fielmente
retratado pela arte ou que seja pura e simplesmente inventado. É outro por puro
gesto de criação. Cabe-nos a nós a pretensão de conhecermos algum dia a
totalidade do género humano e provar, desta forma, que tal e tal personagens
são um devaneio? Não importa, porque mesmo nesse devaneio existe a presença de
alguém senciente, que pulsa, debate-se e vive, invocado pela expressão
artística de um escritor. É só através do contacto com o outro que melhor nos
definimos. Esse contacto implica sair da nossa área de conforto e defrontarmo-nos
com outras realidades sociais, económicas, políticas, outras formas de sentir,
de pensar, outras mundividências que nos obrigam a perceber, pouco a pouco, qual
a nossa realidade. Mirarmo-nos ao espelho é benéfico até ao ponto em que
apreendemos o sentido de nós próprios, faze-lo perpetuamente é a esterilidade
narcísica que cega a nossa humanidade latente. Ler, ficção e não-ficção, é,
portanto, extravasar os limites do eu, contactar com outros seres, com a sua
imaginação, o seu sentir, rasgar as censuras auto-impostas e externas, sair da
linha traçada, pelas circunstâncias que conjugaram o nascimento de cada um,
para a sua vida com vista à completude pessoal.
Tal como a
história, a literatura exige uma constante reinterpretação. A história não se
fina na concepção positivista ultrapassada de colecção de factos históricos
numa imensa torre de babel devidamente explicada e catalogada para memória
futura e assombro civilizacional. Concepção resumida no niilismo singelo “a
história está toda, ou quase toda, escrita”. Assim como cada geração deve olhar
para o passado, e reinterpreta-lo numa tentativa constante de auto-análise,
deve faze-lo também com a literatura, com a liberdade que lhe permite o mais
facilitado acesso ao material literário do que ao histórico. É esta liberdade
de meios e esta necessidade de sentido interpretativo que, na minha óptica,
justificam a existência de um blogue literário. E, porque essa interpretação
deve ser múltipla, derivada da perspectiva de cada um com vista à melhor
apreensão de significados creio justificada a criação do meu blogue. Poderá ser apenas uma gota no meio de um oceano, mas é
a minha gota e humildemente a faço
cair nesse mar oceano.
O título do
blogue, Literatura à Solta, deve-se à adaptação da máxima de um filósofo
português que tento seguir na minha vida. Agostinho da Silva afirmava, com
convicção, “o homem nasce para criar, para ser poeta à solta”. Creio que é
pouco ouvido, e ainda menos seguido, nos dias de hoje. Aquilo que Agostinho
queria dizer é que o homem não se esgota no trabalho necessário à sobrevivência,
sua e da espécie humana. Nasceu, isso sim, para atingir o desenvolvimento ideal
das suas capacidades, gostos e sensibilidades de forma a criar, a dar ao mundo
aquilo que só ele, pela unicidade que representa no universo o seu simples
nascimento, poderá acrescentar. Não sei até que ponto a minha missão no mundo
passa pela divulgação literária, mas reclamo-me do ser poeta à solta para a
realizar. O Literatura à Solta irá acompanhar o percurso das minhas leituras
com tentativas de interpretação de cada livro terminado, a publicação ocasional
de excertos literários com os quais me identifico ou que simplesmente me fazem
pensar, e a declamação dos poemas que têm vindo a marcar a minha vida. De
resto, reservo a liberdade que o próprio título me concede para, sempre que
assim o entender, extravasar estes limites.