segunda-feira, 12 de outubro de 2020

"O Essencial Sobre Agostinho da Silva" de Romana Valente Pinho

 

O Essencial sobre o Essencial

É um defeito crónico de Portugal apenas dar importância a alguém após a sua morte. É um defeito português ainda maior a cultura das efemérides, isto é, apenas subsidiar investigação sobre um dado tema cultural e/ou científico em tempos de comemoração de centenários do nascimento ou falecimento de um autor. O Essencial sobre Agostinho da Silva é disso exemplo, surgindo em Março de 2006, no centenário do nascimento de Agostinho da Silva (13/2/1906), e tratando-se, na verdade, de uma entre um pequeno punhado de obras publicadas sobre o filósofo português.

Quanto à obra em questão, está inserida no âmbito da colecção “O Essencial sobre…” (publicação n.º 83), criada em 1980 pelo então director das edições da INCM (Imprensa Nacional-Casa da Moeda), Vasco Graça Moura, que tantos bons frutos deu já à cultura portuguesa. Catorze anos volvidos, mantém-se a melhor introdução a Agostinho, fornecendo um conjunto de análises e materiais passíveis de uma primeira abordagem satisfatória do pensamento multifacetado do filósofo luso.

 

Agostinho da Silva (1906-1994)

O Essencial abre com um breve percurso biográfico, segmentado pelos três grandes momentos da vida de Agostinho: a sua formação universitária e actividade lectiva até ao exílio, em 1944; a estadia na América do Sul, sobretudo no Brasil, até 1969, que irá expandir os seus horizontes filosóficos; e o retorno a Portugal, em plena primavera marcelista, em que se dedica à divulgação, por diversos meios, do seu pensamento. Esta resenha é complementada por uma tábua biobibliográfica, que fixa no tempo as datas dos principais acontecimentos da vida de Agostinho e a publicação das suas principais obras.

Num filósofo em que a acção se entrelaça tão profundamente com a teoria, não sendo possível entender a última sem a primeira, esta resenha afigura-se assaz relevante. Alguns factos mais pertinentes são: a formação na primeira Faculdade de Letras da Universidade do Porto, um foco de pensamento livre anti-regime, na Escola Normal Superior, na Sorbonne e no Collège de France; recusa da assinatura da Lei Cabral, que proibia a pertença de funcionários públicos a associações secretas; acções de divulgação de conhecimento por todo o país nos anos 1930, nomeadamente a publicação dos Cadernos de Informação Cultural e das Biografias; prisão política no Aljube em 1944; acção cultural no Brasil, com a criação da Universidade Federal de Santa Catarina, do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade Federal da Bahia, da Universidade de Brasília e do seu Centro Brasileiro de Estudos Portugueses; acção de difusão da sua obra junto do público português e participação no programa televisivo Conversas Vadias.

 

A Trindade do Pensamento Agostiniano

 
 

Todavia, o grosso da atenção de Romana Valente Pinho recai na explanação e análise das linhas essenciais do pensamento pluridimensional agostiniano, centradas à volta de três vertentes: a educação, acção político-cultural, e reflexões filosófico-religiosas. A educação foi, na verdade, uma das primeiras preocupações de Agostinho, com a qual teve contacto directo logo após a conclusão da licenciatura e o ingresso na docência no ensino liceal. Será, contudo, a amizade que trava com António Sérgio, em Paris, que influenciará decisivamente as suas ideias em relação a este tema. Partindo da visão clássica gnóstica, Agostinho alargará a fórmula sergiana de uma “escola útil para a vida”[1] para aqueloutra, a “escola é vida” (PINHO, p. 28). Adoptando a concepção cooperativista da sociedade e do homem como alternativa ao capitalismo e a sua concepção competitiva dos vários elementos do corpus social, Agostinho da Silva entenderá a Escola como o ponto de encontro dessa acção cooperativa. 

 

António Sérgio (1883-1969)

A Escola deve ser o agente livre potenciador do desenvolvimento humano, em que cesse de vez o binómio mestre/alunos, substituindo-o pelo princípio igualitário do mestre como guiador dos desejos de aprendizagem dos seus alunos, retirando-lhe a autoridade patriarcal em prol de uma acção nutritiva da essência de cada um dos seus educandos. Para tal, devem rasgar-se os programas lectivos convencionais e chamar as artes e os ofícios para a Escola, permitindo um contacto directo da criança com os vários saberes manuais, artesanais, funcionais e artísticos, em que a escrita e os conhecimentos intelectuais são nivelados no mesmo patamar que o conhecimento prático, e não por mútua oposição, como actualmente.

Para Agostinho, a Escola é, assim, um receptáculo da vida, o lugar no qual às capacidades e à essência inata, única no mundo, de cada criança é dada rédea solta para florescerem, levando, também, consigo a eterna busca e aprendizagem gnóstica, como referencial de existência. Indissociável desta concepção da Escola, está a agostiniana Regra dos 3 S’s: 1) Sustento, ter assegurada a sua alimentação e não viver na horrível miséria de acordar de manhã e não saber se, à noite, terá o que comer; 2) Saber, uma arte, um curso, algo que lhe permita desenvolver uma profissão e ganhar a vida; 3) Saúde, acesso universal a cuidados básicos e avançados, quando necessários, de saúde.

 

Antero de Quental (1842-1891)

Admirador de Antero de Quental, Agostinho rever-se-á na crítica político-cultural das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Porém, se concorda com as causas, discorda das soluções apontadas por Antero: a emulação do modelo político-económico dos países da Reforma protestante. A acção político-cultural de Agostinho centrar-se-á na reflexão à volta da portugalidade e, num sentido mais amplo, da lusofonia. Ao contrário de Antero, não crê que a solução seja a tentativa de correr atrás dos modelos europeus, que considera gastos e em decadência. Para Agostinho, o futuro de Portugal reside, num primeiro momento, reencontrar-se consigo próprio, e, num segundo momento, voltar a unir-se aos países de expressão lusófona, com vista a oferecer ao mundo um novo modelo político-cultural, capaz de mitigar os males e as injustiças do mundo.

Neste sentido, o modelo político a reter será a monarquia portuguesa da Idade Média, pré-Descobrimentos: um rei eleito pelo povo, baseado na aclamação de Dom Afonso Henriques pelos seus soldados no final da batalha de Ourique; o país descentralizado em municípios autogeridos por instituições democráticas bem regulamentadas; o poder régio não só concedido pelo povo mas também dependente da auscultação da sua vontade perante as principais decisões de política económica, justiça, administração interna e relações internacionais em sede de Cortes; um mandato régio vitalício, contudo passível de ser revogado em caso de gestão grosseira das suas prerrogativas. No fundo, um misto de monarquia e república. Posteriormente à instituição deste sistema político português autêntico, a missão nacional seria a formação de uma comunidade lusófona, para a propagação deste modelo pelo mundo.

Subjacente às vertentes anteriores, estão as reflexões filosófico-religiosas agostinianas, sobretudo a sua concepção de Deus e o culto do Espírito Santo. Pese embora as fontes filosófico-teológicas a que Agostinho foi beber sejam diversas, contando-se entre elas Platão, Pseudo-Dioniso, Nicolau de Cusa, Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Hegel, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, as principais são indubitavelmente Joaquim de Fiore, Espinosa e Lao Tzu.

 

Espinosa (1632-1677)

De Espinosa vai buscar a ideia de que “tudo o que existe, existe em Deus, […] tudo o que existe é Deus sendo, e que Deus é a causa primeira de tudo; Deus determina tudo o que existe” (PINHO, p. 70). Por sua vez, de Lao Tzu, do taoísmo e do budismo-zen vai adquirir a noção de que Deus é simultaneamente Tudo e Nada, assim “Deus, para além de ser (o) Nada, pode também Ele próprio ser fruto da acção primacial e fundante dessa Entidade Originária (Nada), [… logo] Deus é Nada, porque Tudo é, mas, sobretudo, porque participa do Nada – fundo primevo e final de Tudo” (PINHO, p. 68).

Juntando estas ideias e interpretando-as de uma forma muito sua, Agostinho concebe Deus como o Deus-Paradoxo, o eterno ser, ou entidade, por definição indefinível e incomensurável, tanto transcendente, superior e para além de qualquer compreensão humana, como imanente, a causa em si mesma, constituindo, ao mesmo tempo, o Paradoxo e a resolução paradoxal.

 

Lao Tzu a Conduzir um Búfalo, por Zhang Lu

Com base nesta definição heterodoxa e anticonvencional da divindade, Agostinho da Silva é permeável à teologia de Joaquim de Fiore e a ela, e ao entendimento que desta tiveram o rei D.Dinis e a rainha D. Isabel, no final do século XIII, quando criaram o culto popular do Espírito Santo, subordinará todo o seu pensamento. Isto é, tanto a sua vertente educacional como a político-cultural estão alocadas à, e constituem-se como ramos da, sua concepção, e crença, no culto do Espírito Santo joaquimita.

Para Agostinho, o Espírito Santo será encarnado pelo poder redentor da Criança, pois as crianças representam para ele a idade da inocência e da pureza, em que estamos mais perto daquilo que é a sua essência, “(…) infância, período único em que, para si, o Homem verdadeiramente é” (MANSO, 2009, p. 73)[2]. Significa isto que o Homem está mais perto do Ser, em criança, isto é, existe simplesmente, não pensa, não actua de forma auto-imposta ou condicionada pela sociedade, e, ao Ser, está em contacto com aquilo que representa o seu carácter único e irrepetível, logo, para alcançarmos essa unidade e poder transmiti-la ao mundo, devemos imitar as Crianças, não podemos deixar morrer a nossa Criança interior, porque mata-la é um suicídio interior. É por isso que a vertente educacional, e a Escola em particular, são tão importantes para Agostinho, é preciso não deixar morrer a curiosidade interminável da Criança dentro de cada um de nós. O ensino deve ser revolucionado e o professor deve estar inteiramente disponível para ensinar aquilo que as pessoas quiserem aprender. Os currículos escolares pré-definidos devem ser abolidos, o critério para as aulas é simplesmente a curiosidade infindável do Eu Criança, avisando o professor, com pelo menos um dia de antecedência daquilo que quer aprender, para lhe dar tempo, caso não saiba, de aprender primeiro e poder ensinar-lhe depois, seja a ler ou escrever, seja a construir uma cadeira, ou aprender a desenhar. O saber deve ser múltiplo e livre, não deve ser confinado às estreitas vistas da Ciência, das Letras, da Filosofia ou Matemática.

 

Joaquim de Fiore (1135-1202)

Adicionalmente, o Espírito Santo afirma-se como a vivência plena da liberdade, de uma vida gratuita, para o qual o Homem verdadeiramente nasce, livre da luta pela sobrevivência, da competição económica entre indivíduos, empresas, Estados, que mantêm as pessoas numa condição constante de escravatura, escravatura do trabalho, do salário, e sempre em regime de alerta. Assim sendo, o regime político-económico perfeito é o regime que potencia a vinda do Espírito Santo e o torna uma realidade palpável, que coloca o Homem no centro da questão e o liberta dos seus condicionalismos circunstanciais, não o reduzindo cada vez mais ao sucedâneo de si mesmo, mero produto incompleto, não-assimilado e alienado para o qual as sociedades capitalistas e neoliberais tendem a caminhar.

Agostinho entende que, com o avanço inevitável da economia em direcção à robotização, mais e mais empregos serão destruídos. A sua opção é criar um sistema progressivo de robotização da economia, comunitária e cooperativamente gerido, de forma a libertar o máximo possível de pessoas da obrigatoriedade de trabalhar, reduzindo a um absoluto mínimo o trabalho humano, de forma a que toda a gente possa usufruir da sua liberdade para criar. O futuro deve ser, assim, gratuito e o homem deve ser livre de forma a poder desenvolver-se pessoalmente, desenvolver a sua capacidade criadora e perceber o carácter único e irrepetível da sua essência, de modo a poder transmiti-lo ao mundo, como afirma num dos seus livros:

 

“Mas é preciso querer nitidamente não fazer nada, não é abandonar-se ao não fazer nada, é não querer fazer nada mesmo! Ter a profissão de não querer fazer nada. (...) Temos que pensar numa economia, numa sociedade, em que qualquer tipo seja reformado à nascença. E saiba imediatamente, se puder entender, que quem não faz nada morre depressa. E que, portanto, procure naquilo que é, naquilo que sente do mundo, o que é que gostaria de fazer. As duas leis devem ser: «Não trabalhe nunca; por favor esteja sempre ocupado».” (SILVA, p. 14)[3].

 

Crítica de Fontes

 

A finalizar a obra, Romana Valente Pinho insere uma síntese bibliográfica que, se bem que contenha apenas uma pequena parte da obra do autor, o absoluto mínimo essencial do pensamento agostiniano, redirecciona correctamente para a edição, em 12 volumes, de parte significativa da produção de Agostinho, Obras de Agostinho da Silva, coordenada por Paulo Borges, através da Âncora Editora, entre 1999 e 2003. A síntese vale, sobretudo, pelas duas páginas de monografias e artigos, bastante escassos, sobre George Agostinho Baptista da Silva.

Não constam desta lista final, compreensivelmente, no caso do primeiro, dada a publicação posterior à concepção do Essencial, e inadmissivelmente quanto às duas últimas: Tempos de Ser Deus (2006, Âncora Editora), de Paulo Borges, uma análise do pensamento agostiniano à luz da sua espiritualidade ecuménica; Agostinho da Silva: Aspectos da Sua Vida, Obra e Pensamento (2000, Estratégias Criativas), de Artur Manso, dedicado ao estudo geral e particular do pensamento do mestre; e Agostinho da Silva, 1906-1994 (2005, Estratégias Criativas), também de Artur Manso, constituindo uma pequena biobibliografia à moda da obra de Romana Valente Pinho, com o mesmo formato reduzido.

Finalmente, para quem estiver interessado, O Essencial Sobre Agostinho da Silva está disponível para download, em formato Pdf, no sítio da Academia/edu, na página que se segue em nota de rodapé[4].



[1] PINHO, Romana Valente (2006) – O Essencial Sobre Agostinho da Silva. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. (O Essencial Sobre, n.º 83).

[2] MANSO, Artur (2009) – A Memória das Origens: Agostinho da Silva e Barca de Alva. Revista Altitude. Guarda: ano LXVIII, n.º 12 (3.ª série), p. 65-73.

[3] SILVA, Agostinho da (1994) – Ir à Índia sem Abandonar Portugal. Lisboa: Assírio & Alvim.


sexta-feira, 3 de julho de 2020

"Da Primavera ao Inverno Árabe" de Maria João Tomás



Da Primavera ao Inverno Árabe consiste numa colectânea de crónicas publicadas no Diário de Notícias, entre 7 de Fevereiro de 2011 e 28 de Dezembro de 2012, complementadas por um prefácio, uma introdução, um anexo e uma lista bibliográfica de fontes online. A autora, Maria João Tomás, é mestre em Sociedades, Culturas e Civilizações Pré-Clássicas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, doutorada em História e Cultura do Médio Oriente Antigo, pela Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e falante de árabe, através de um curso no Instituto de Línguas da Universidade Nova de Lisboa. Adicionalmente, é professora auxiliar no Departamento de História da Universidade Autónoma de Lisboa, e mantém uma coluna intitulada “De Outras Margens”, que sai às sextas-feiras, no Diário de Notícias[1].

Maria João Tomás

Longe de se arvorar como uma análise aprofundada da questão do Médio Oriente durante a chamada Primavera Árabe, a presente obra consiste na opinião informada de uma especialista na cultura e história desta parte do globo à medida que os eventos se iam desenrolando. Isto mesmo confirma Maria João Tomás no prefácio, ao apontar o desejo de que o livro conte “as narrativas das revoluções da Primavera Árabe, ao sabor dos acontecimentos” (TOMÁS, p. 9).
 
Origens

Partindo deste princípio, João Tomás caracteriza a Primavera Árabe como o resultado de protestos espontâneos contra as ditaduras e governos opressores do Médio Oriente, encetados pelas camadas jovens via Facebook. De facto, João Tomás comprova esta percepção através de relatos directos de um conjunto de quatro intervenientes neste processo revolucionário – a líbia Danya Bashir, a egípcia Mona Prince, o marroquino Aboubakr Jamai, e o tunisino Yassine Ayari –, reunidos em debate, mediado pela autora, no âmbito da «Festa da Literatura do Norte de África» da Fundação Calouste Gulbenkian, a 22 de Junho de 2012, transcritos no anexo “Conversas com activistas, revolucionários, bloguistas, twitters e facebookers” (TOMÁS, p. 223-38). Assim sendo, alvos de uma vasta rede de espionagem estatal presencial, a única forma que estes activistas tiveram de organizar os seus protestos foi através de grupos e chats privados no Facebook, que dinamizaram o descontentamento geral com os regimes, chegando a uma vasta rede de contactos através do passa-palavra, que proporcionou o carácter inorgânico, logo impossível de combater eficazmente porque sem uma liderança identificável, que obteve os resultados que conhecemos, o derrube de vários dos ditadores mais opressivos do Médio Oriente.

Reportagem do canal saudita Al Arabiya sobre a Primavera Árabe no Egipto

O catalisador das revoluções terá sido a “crise do pão de 2010”, por sua vez, fruto de sucessivos maus anos agrícolas que se repercutiram numa crise mundial de produção de cereais que fez aumentar exponencialmente o preço do pão, ainda a base da alimentação da maioria da população nesta região. O aumento generalizado da pobreza de uma vasta camada da sociedade, em contraste com o enriquecimento ilícito dos seus líderes, devido aos dividendos resultantes da exploração exclusiva dos recursos naturais nacionais, foi quanto bastou para levar as pessoas a agir. Ademais, é preciso ter em conta que vários dos impulsionadores das revoluções eram maioritariamente jovens adultos com formação universitária, caídos no desespero do desemprego e da falta de perspectivas de futuro após o fim dos seus cursos.

O exemplo tomado foi o dos protestos no Irão em 2009, devido às suspeitas de fraude na reeleição de Ahmadinejad. E o programa encabeçado pelos revolucionários, embora sujeito a idiossincrasias nacionais de vária ordem, pode ser resumido por aquilo que a revolucionária iemenita Tawakkol Karman, Prémio Nobel da Paz de 2011, designa como as quatro etapas da Primavera Árabe: “ [1º] derrubar o ditador e a sua família; [2º] derrubar as suas redes de nepotismo, como a sua segurança e os militares que lhe obedecem cegamente; [3º] criar instituições estatais de transição: [4º] dar legitimidade constitucional e estabelecer um Estado civil moderno e democrático” (TOMÁS, p. 235).

“O Novo Médio Oriente”
 
Paralelamente, João Tomás define a Primavera Árabe como o marco divisório entre o “Velho Médio Oriente”, que ajudou a derrubar, e o “Novo Médio Oriente”, que está a ajudar a formar, consciente ou inconscientemente. Se podemos conceber o “Velho Médio Oriente” como tendo sido orientado pelo movimento político do pan-arabismo, na sequência do desmoronamento do Império Otomano e da participação árabe na Primeira Guerra Mundial, isto é, a reunião de todos os países de língua e civilização árabe num superestado, de cariz nacionalista, secular e laico; o “Novo Médio Oriente” está a constituir-se nos seus antípodas. Ao pan-arabismo sucede-se o pan-islamismo, movimento político que pretende unir todos os países de maioria e tradição muçulmanos numa grande potência de fundamento teocrático, comandada por um califa, com a Sharia como base legal, e de carácter antiocidental, anti-iluminista, e antidemocrático. Defendendo que o “verdadeiro Islão [é] o das primeiras gerações de muçulmanos e que todos deveriam comportar-se como eles, de forma a viveram a genuinidade da fé islâmica, sem distorções” (TOMÁS, p. 25), o pan-islamismo é baseado no movimento religioso wahhabista, surgido no século XVIII, que pretendeu reformar a religião islâmica sobre estas bases. Por sua vez, Jamal al-Din al-Afghani, o fundador do pan-islamismo, recuperou a doutrina religiosa wahhabista, no final do século XIX, e deu-lhe um propósito político.

Jamal al-Din al-Afghani (1839-1897)

Duas forças conseguiram rapidamente dominar o panorama político do Médio Oriente neste período revolucionário: a Irmandade Muçulmana, e o salafismo. O salafismo pode ser entendido como o braço activo da teoria pan-islâmica de al-Afghani. Surgindo como um movimento religioso dentro do islamismo sunita, foi largamente perseguido pelos vários regimes da região, mas manteve uma organização clandestina bastante eficiente, que lhe permitiu, não só sobreviver como formar uma rede paralela de ajuda e caridade aos mais desfavorecidos. Após a queda dos regimes ditatoriais, os salafitas rapidamente se constituíram como força política e têm uma expressão considerável junto do eleitorado muçulmano. Por sua vez, a Irmandade Muçulmana foi fundada em 1928 como um movimento político com o intuito de expulsar os britânicos do Egipto, mas depressa criou raízes pelo mundo muçulmano como entidade política anticolonial, estabelecendo uma rede internacional de ajuda aos mais carenciados que não só levou à sua popularização como a um alargamento da sua base de apoio. A visão política da Irmandade Muçulmana é algo controversa, partindo da aceitação do Alcorão como o guia para uma vida perfeita e a consequente visão de que o enquadramento legal da sociedade deverá ser baseado na Sharia, pretende, ao mesmo tempo, defende-lo no seio de um Estado democrático, defensor das liberdades e direitos, entre os quais a liberdade de expressão e reunião. A presença da irmandade é uma constante na política do Médio Oriente, e “os partidos que criou estão neste momento no poder na Tunísia e em Marrocos, e preparam-se para ganhar [crónica de 24-12-2011], embora sem maioria, a Câmara Baixa do Egipto”. Adicionalmente, a irmandade é “influente na Jordânia, está por detrás do Hamas que controla a Faixa de Gaza e está na oposição ao regime de Bashar Al-Assad na Síria” (TOMÁS, p. 112). Ambas as forças políticas parecem apontar para uma teocracia, como modelo a seguir, ou, no caso da Irmandade Muçulmana, uma democracia de fundamento legal teocrático.

A Questão Síria

Imagens em directo da batalha de Alepo (2014) 
 
Ao longo das restantes crónicas, João Tomás debate-se com vários temas da actualidade islâmica, como a luta pelos direitos das mulheres no Iémen. De particular interesse, contudo, destaca-se a sua abordagem da questão síria. Partindo do enquadramento da revolta na Síria, um regime autoritário e repressivo, governado por dirigentes corruptos, de orientação religiosa xiita a governar uma população de maioria sunita, João Tomás passa a inserir o conflito armado, que brotou da sublevação civil, num contexto de uma guerra fria latente no Médio Oriente. É possível dividir o Médio Oriente em dois eixos de influência agregados em torno de duas vertentes contrastantes do islamismo, o sunismo, encabeçado pela Arábia Saudita e a Turquia, e o xiismo, liderado pelo Irão, e o Iraque, pós-Segunda Guerra do Golfo, o Líbano e a Síria de Assad seus aliados. Qualquer desequilíbrio no status quo é prejudicial e disruptor, levando a que cada conflito na região se manifeste numa escalada de hostilidades entre ambos os eixo tanto pelo aumento da sua influência como pela manutenção da sua posição. A Síria é uma peça-chave no eixo de influência xiita, dado que é a porta de acesso do Irão para o Mediterrâneo, sendo essencial para as exportações iranianas de petróleo e para a sua relevância no contexto internacional. Adicionalmente, também a Rússia tem interesses constituídos na região, mantendo uma importante base naval em Tartus, na costa síria, o único porto, até à anexação da Crimeia, em 2014, de águas temperadas da armada russa; bem como “lucrativas explorações de hidrocarbonetos, de oleodutos e gasodutos” (TOMÁS, p. 176) com o regime de Assad. Uma vitória dos rebeldes sunitas alteraria o equilíbrio de forças para o lado da Arábia Saudita, o que beneficiaria decisivamente a influência norte-americana na região, dada a sua aliança com o regime de Riade. São estes os motivos pelos quais o conflito sírio não tem fim à vista, e a razão pela qual uma revolta local contra o despotismo de Assad levou a uma guerra civil de proporções internacionais.
 
Considerações Finais

Não obstante o conhecimento de causa dos temas em questão, os textos de Maria João Tomás denotam uma certa visão orientalista, tal como foi conceptualizada e criticada por Edward Said[2]. Embora, muito provavelmente, não seja sua intenção, dado que chega a referir a obra de Edward numa nota de rodapé, ao descrever, na introdução, o Império Otomano, e o Médio Oriente, como tendo vivido num perpétuo estado de estagnação nos três a quatro séculos anteriores à sua dissolução, João Tomás revela um certo preconceito eurocêntrico e uma visão romantizada do Oriente, imutável, sem história, parado no tempo, que Said denunciou em Orientalismo. De facto, durante o Renascimento, um dos picos de desenvolvimento científico europeu, o Império Otomano estava par a par com a Europa a nível tecnológico e societário. Na verdade, tão tarde, pelo menos, como 1683 (data do segundo cerco de Viena), em plena revolução científica iluminista, os otomanos revelaram-se um antagonista à altura das potências europeias, sendo necessário o esforço conjunto da Coroa de Habsburgo, do Sacro Império Romano-Germânico, e do reino da Polónia-Lituânia para os derrotar. A distância do desenvolvimento tecnológico entre a Europa e o Império Otomano só se tornou expressiva na sequência da Revolução Industrial, evento que surgiu no Reino Unido e demorou a expandir-se pelas outras potências europeias. Bem assim, as dissemelhanças crescentes no espectro político entre os dois blocos civilizacionais só se começaram a adensar com a Revolução Francesa, sendo os Turcos-otomanos vistos durante séculos na Europa como um exemplo de tolerância religiosa e de aproveitamento meritocrático dos saberes e competências de indivíduos nas mais diversas áreas.

Paralelamente, embora Maria João Tomás mencione os efeitos secundários perniciosos da participação internacional na Guerra Civil Líbia, considera-a “um caso de sucesso quase imediato” (TOMÁS, p. 164). Isto mesmo apesar do posterior clima de paz armada e actual estado de guerra civil na Líbia, com o país dividido, em risco de cisão interna, com uma nova deriva autoritária e um conflito latente entre os vários povos e tribos locais. Aquilo que João Tomás considera um sucesso, e mesmo apesar de ter partido dos desejos internos de mudança do povo líbio, rapidamente escalou e foi, na verdade, o resultado de uma política de prestígio europeu e de uma ideologia de messianismo político, tal como aponta Todorov em Os Inimigos Íntimos da Democracia (TODOROV, p. 71-9).

 Imagens em directo da morte de Kadhafi (20/10/2011), do The Telegraph

Por fim, as crónicas de João Tomás estão repletas de formulações deste género: “a Líbia tem todas as condições para conseguir fazer uma transição democrática com sucesso; resta saber gerir a sua riqueza natural, não cair na tentação fácil do federalismo como solução para os conflitos tribais e manter afastada a cobiça estrangeira” (TOMÁS, p. 172). Ou ainda, o “novo Presidente egípcio […] terá que tirar o país da difícil situação económica em que se encontra, terá que resistir às pressões de tornar o Egipto num Estado islâmico ou de voltar à ditadura” (TOMÁS, p. 160). E também, falando da vitória dos partidos associados à Irmandade Muçulmanas em vários países no rescaldo da Primavera Árabe, “é necessário que saibam acabar com a corrupção e que solucionem os graves problemas económicos e sociais que os países […] enfrentam” (TOMÁS, p. 113). 

Edward Said (1935-2003)

Podemos resumi-las como opiniões voluntaristas e, de facto, injustas em relação aos respectivos intervenientes, dado que, melhor analisadas, parecem destinadas a falhar, ainda antes de as situações referidas serem postas em prática. Vejamos, a Líbia viveu quarenta e dois anos em ditadura, é constituída por um conjunto étnico ecléctico que inclui povos árabes, berberes, tuaregues e tubus, que resulta mais da definição arbitrária das suas fronteiras durante a colonização italiana do que da sua tradição histórica. Tudo somado, é difícil, para não dizer quase impossível, que a Líbia consiga manter uma coesão interna forte, sem recorrer a uma opção federalista, ou análoga, uma convivência pacífica entre povos e tribos antagónicos e, acima de tudo, no âmbito de um processo democrático, em relação ao qual a esmagadora maioria da população é ignorante, e do qual desconfia. Quanto ao afastamento da cobiça estrangeira, se nem o regime de Kadhafi, cuja imensa fortuna pessoal foi capaz de o armar de tecnologia militar de ponta e de vastas hostes mercenárias, conseguiu faze-lo, poderá um governo de transição, saído de uma guerra civil alcançar tal proeza? Quanto às possibilidades do Egipto, Tunísia, e afins, se manterem distantes das tentações ditatoriais e teocráticas, a própria autora explica que esta foi a realidade local durante décadas e que o pan-islamismo é o motor dos novos partidos saídos da Primavera Árabe, tanto da Irmandade Muçulmana como dos salafitas. Em suma, é impossível não recordar as conclusões apontadas por Edward Said em Covering Islam: How the Media and the Experts Determine How We See the Rest of the World, sobre o problema dos especialistas e a sua função nos média[3].


Referências

TOMÁS, Maria João (2013) Da Primavera ao Inverno Árabe. Lisboa: Temas e Debates. 

TODOROV, Tzvetan (2017) – Os Inimigos Íntimos da Democracia. Lisboa: Edições 70.


[2] Consultar “Edward Said on Orientalism”, minuto 0 a 14:16:
[3] Consultar “Edward Said On Orientalism”, minuto 14:17 a 28:08: