sexta-feira, 9 de novembro de 2018

"O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde" de Robert Louis Stevenson

E das agonias de um ataque de tuberculose de Robert Louis Stevenson, eis que surgiu a novela alegórica que melhor definiu a psique vitoriana. O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde (também conhecido como O Médico e o Monstro) constitui hoje parte do imaginário ocidental mas, creio, tem sido dada pouca relevância ao contributo que representa para desvendar a psicologia oitocentista.

Robert Louis Stevenson (1850-1894)

No sentido de expor o meu ponto de vista, impõe-se primeiro um resumo da acção da novela. Durante um dos seus passeios dominicais, G. J. Utterson, advogado, toma conhecimento de um bizarro acto de brutalidade. O seu primo Richard Enfield testemunhara um sujeito mal-encarado, de estatura baixa, cuja característica predominante era a de uma disformidade impalpável que causava repulsa em todas as pessoas que o avistavam, a abalroar uma criança com quem se cruza, pisando-a indiferentemente. Confrontado com a indignação de Enfield e a ira dos familiares da menina, o sujeito, que se apresenta como Edward Hyde, é intimado a pagar uma avultada compensação à vítima de forma a evitar o escândalo. Para aumentar a surpresa do advogado, o cheque com que é paga a indemnização porta o nome do Dr. Henry Jekyll, seu amigo e cliente. Semelhante revelação faz Utterson questionar-se sobre a natureza das relações entre o amigo e Hyde, próxima ao ponto de Jekyll ter outorgado um testamento que faz do último o seu único herdeiro.

Após nova ignomínia, alguns meses mais tarde, com o assassinato do deputado Carew às mãos de Hyde, Utterson vê-se forçado a investigar o amigo que lhe assegura livrar-se em definitivo da influência de tal indivíduo sanguinário. Momentaneamente liberto da sujeição ao Sr. Hyde, o Dr. Jekyll retoma uma vida exemplar, de filantropia e caridade aos mais desfavorecidos apenas para, pouco depois, recair numa estranha reclusão auto-imposta. É com apreensão que Utterson, intrigado com estas novas circunstâncias, recebe o mordomo de Jekyll, Poole, que lhe confidencia a suspeição do regresso do Sr. Hyde e do, na perspectiva do criado, consequente assassinato do amo. Hyde, pois dele se tratava, enclausurado no gabinete de Jekyll, comete suicídio assim que Poole e Utterson conseguem forçar a porta da divisão.

Nos papéis em cima da secretária está a resposta para estes enigmas: a descoberta científica de Henry Jekyll capaz de materializar a divisão da alma numa dupla existência física, a virtuosa e a ignominiosa. Nas suas investigações bizarras, Jekyll tinha desenvolvido um composto solúvel que, ingerido, lhe permitia transformar-se numa outra manifestação de si mesmo, a consubstanciação de todos os maus instintos, prazeres infames e pecados mortais que compartilhava, na sua dualidade moral, com o lado altruísta, honesto e benemérito da sua personalidade. Hyde era essa manifestação, o lado negro do respeitável Dr. Jekyll. Inebriado, a princípio, com a sua descoberta, associando o fruir do pecado, através de Hyde, com a liberdade, cedo este assume relevo sobre o médico. Por fim, enredado no meio dos crimes vis do seu lado maligno, Jekyll assiste progressivamente ao seu desvanecimento, e à preponderância definitiva de Hyde. É num último assomo de lucidez, já transfigurado no seu duplo hediondo, que comete suicídio de forma a privar o mundo de semelhante monstro.
 
Richard Mansfield, numa adaptação dramatúrgica da obra
O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde não é único no seu género. Pertence à literatura que se serve da figura, originária do folclore alemão, do doppelgänger, um duplo ou gémeo obsessivo e corrupto, para a qual contribuíram E.T.A. Hoffmann, na novela O Elixir do Diabo, Edgar Allan Poe, no conto William Wilson ou Fiódor Dostoiévski, com o romance O Duplo. Todavia, fá-lo sob uma certa via “científica” que o tornou tão popular, num século em que surgiu e se popularizou o espiritismo de Allan Kardec, seguido, por exemplo, por uma figura tão respeitável como Sir Arthur Conan Doyle, médico de formação. Através desta via, Stevenson expõe um dos mais profundos traços do seu tempo, a dualidade moral que fez do século XIX simultaneamente o palco de um dos maiores avanços materiais da humanidade, com a Revolução Industrial, e a incubação, seguindo a periodização de Eric Hobsbawm, historiador especialista na referida centúria que baliza de 1789 a 1914, de uma das guerras mais mortíferas da história, a Primeira Guerra Mundial.
 
Poster anunciando a publicação de O Médico e o Monstro
O cúmulo dessa dualidade foi o período vitoriano, correspondente ao reinado da rainha Vitória (1837-1901), que podemos definir como a materialização da expressão “vícios privados, virtudes públicas” tão bem aplicável ao seu próprio filho, o príncipe Eduardo (futuro Eduardo VII), cuja vida privada dissoluta contrastava com a representação oficial da monarquia que exerceu pelo Império Britânico. Em evidente contraste com os rígidos princípios e etiquetas, este período assistiu a um aumento sem precedentes, até então, de publicações literárias de carácter erótico cujo melhor exemplo é Eveline, As Aventuras Amorosas de uma Dama Vitoriana, com o seu manancial de duplo incesto e outras perversões praticadas por respeitáveis cavalheiros ingleses. Não é exclusivo de Inglaterra, em Portugal, Cândido de Figueiredo, filólogo, lexicógrafo, presidente da Academia de Ciências de Lisboa e sócio fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa, publicou clandestinamente uma novela erótica de muito sucesso, Entre Lençóis.
 
Dr. Thomas Neil Cream (1850-1892), médico, um dos suspeitos do caso Jack, o Estripador
É muito interessante notar que O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde (1886) precedeu em apenas dois anos os crimes brutais do serial killer Jack, o Estripador (1888). Pese embora continue um caso por resolver, persistem suspeitas de que o assassino tivesse formação médica, dados os detalhes cirúrgicos das suas mutilações, e equaciona-se a possibilidade de ser oriundo de um estrato social elevado, razão pela qual terá escapado ao espectro das investigações policiais, uma clara analogia com a novela de Stevenson.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

"Carta ao Pai" de Franz Kafka

É difícil catalogar Carta ao Pai. À partida, parece óbvia a sua inclusão no antiquíssimo género literário confessional criado por Santo Agostinho, no século IV d.C., para o qual contribuíram nomes tão sonantes como Rousseau e Tolstói. Na verdade, Carta ao Pai vai para além dos limites da confissão autobiográfica para ficcionar o mundo interior do autor, porque, tal como o próprio Kafka afirma, a escrita constitui para si “uma tentativa de me tornar independente, um ensaio de fuga”. Só escrevendo Kafka é capaz de se libertar, mesmo que por instantes, dos tormentos que o assombram e exorcizar os seus complexos. Desta forma, é propositadamente incerta a barreira entre o real e o ficcionado, a verdade e o seu recontar nesta obra que pretende traçar a origem desses males.
 
Primeira obra do género confessional
Começando por delinear a genealogia dos caracteres familiares num binómio pai/mãe (Kafka/Löwy), que reconhece ter herdado num equilíbrio desproporcional, Kafka associa a sua aguda sensibilidade, timidez e obstinação ao ramo Löwy, enquanto expõe a herança Kafka apenas como o resultado da manifestação do seu carácter possante, dominador, autoritário e irascível. Figura de referência da sua infância e juventude, o pai assumir-se-á sempre na vida de Franz como a medida de todas as coisas, a causa de todos os males e, pela educação rígida e fraqueza hipócrita em não seguir os próprios preceitos que lhe impõe, a razão da sua incapacidade para uma vida plena e saudável. Constantemente ausente na primeira infância devido ao trabalho absorvente da loja que criou, Hermann Kafka povoa as memórias mais antigas do filho com recriminações constantes, incompreensão e falta de aprovação, não falando já de carinho, pois Franz, no seu malnutrido lado emocional, não almejava sequer ao carinho paternal.
 
Hermann Kafka (1854-1931) e Julie Löwy (1856-1934), pais de Kafka
Outra experiência de infância irá condicionar Kafka filho, a relação mutável com a loja. Inicialmente vivida como ponto de encontro com a comunidade, foco de carinho exterior, surpresa, aprendizagem e de contacto íntimo com Hermann, a falta de paciência e a forma humilhante como este passa a tratar os empregados contratados, à medida que o estabelecimento vingava, tornaram Franz avesso ao local. A mera menção à loja é-lhe penosa, pelo sentimento de culpa que desenvolveu para com os funcionários, que tentou compensar pelos maltratos do patrão, seu pai. Neste sentido, a escolha futura da profissão não tomará sequer em consideração o negócio familiar. Kafka enveredará pelo ramo das seguradoras onde, na sua opinião, é explorado, racionalizando a sua complacência com esse mesmo sentimento de culpa e inferioridade desenvolvido na infância. Sentimento esse que o persegue ao longo da vida, dando origem a um pessimismo entranhado e uma incapacidade de se valorizar, mesmo perante o sucesso escolar que granjeou na escola e na universidade, que assume como uma farsa, esperando a cada momento ser desmascarado.

O foco central da obra é, contudo, a impossibilidade que Kafka reconhece em contrair matrimónio. Partindo da associação que estabeleceu entre sexo extraconjugal e sujidade, sem dúvida uma referência à sífilis, comum entre prostitutas na sua época, Franz só concebe a limpeza, sexual e moral, e felicidade superior no matrimónio. O casamento é para si uma forma de se afirmar como homem e, sobretudo, de consumar a plena independência da influência nefasta do pai. Todavia, acaba por chegar à conclusão de que também o casamento lhe é barrado, porque, se bem que uma fuga, é igualmente uma comunhão mais estreita com a figura paterna, orgulhoso do seu matrimónio harmonioso, que Kafka assume impossível de superar, contaminado que está com a presença de Hermann.
 
Milena Jesenská (1896-1944), uma das paixões platónicas de Kafka
Carta ao Pai é, sobretudo, uma fonte de referências autobiográficas, que os biógrafos de Franz Kafka têm utilizado com cuidado, tentando destrinçar a ficção da verdade nela narrada. É, também, mais relevante para o leitor comum, um vector de acesso à mentalidade kafkiana, permitindo-o nortear-se pelo mundo do absurdo e do ilógico que o caracteriza. Numa leitura superficial, como foi a minha, reparei na esporádica caracterização de si próprio como “verme”, impossível de dissociar de A Metamorfose. Certamente uma leitura mais cuidada, tendo em conta outros textos como O Castelo e O Processo, que não li, descobrirão mais conexões.