E das agonias de
um ataque de tuberculose de Robert Louis Stevenson, eis que surgiu a novela
alegórica que melhor definiu a psique vitoriana. O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde (também conhecido como O Médico e o Monstro) constitui hoje
parte do imaginário ocidental mas, creio, tem sido dada pouca relevância ao
contributo que representa para desvendar a psicologia oitocentista.
Robert Louis Stevenson (1850-1894) |
No sentido de
expor o meu ponto de vista, impõe-se primeiro um resumo da acção da novela.
Durante um dos seus passeios dominicais, G. J. Utterson, advogado, toma
conhecimento de um bizarro acto de brutalidade. O seu primo Richard Enfield
testemunhara um sujeito mal-encarado, de estatura baixa, cuja característica
predominante era a de uma disformidade impalpável que causava repulsa em todas
as pessoas que o avistavam, a abalroar uma criança com quem se cruza, pisando-a
indiferentemente. Confrontado com a indignação de Enfield e a ira dos
familiares da menina, o sujeito, que se apresenta como Edward Hyde, é intimado
a pagar uma avultada compensação à vítima de forma a evitar o escândalo. Para
aumentar a surpresa do advogado, o cheque com que é paga a indemnização porta o
nome do Dr. Henry Jekyll, seu amigo e cliente. Semelhante revelação faz
Utterson questionar-se sobre a natureza das relações entre o amigo e Hyde,
próxima ao ponto de Jekyll ter outorgado um testamento que faz do último o seu
único herdeiro.
Após nova
ignomínia, alguns meses mais tarde, com o assassinato do deputado Carew às mãos
de Hyde, Utterson vê-se forçado a investigar o amigo que lhe assegura livrar-se
em definitivo da influência de tal indivíduo sanguinário. Momentaneamente
liberto da sujeição ao Sr. Hyde, o Dr. Jekyll retoma uma vida exemplar, de
filantropia e caridade aos mais desfavorecidos apenas para, pouco depois,
recair numa estranha reclusão auto-imposta. É com apreensão que Utterson,
intrigado com estas novas circunstâncias, recebe o mordomo de Jekyll, Poole,
que lhe confidencia a suspeição do regresso do Sr. Hyde e do, na perspectiva do
criado, consequente assassinato do amo. Hyde, pois dele se tratava,
enclausurado no gabinete de Jekyll, comete suicídio assim que Poole e Utterson conseguem
forçar a porta da divisão.
Nos papéis em
cima da secretária está a resposta para estes enigmas: a descoberta científica de
Henry Jekyll capaz de materializar a divisão da alma numa dupla existência
física, a virtuosa e a ignominiosa. Nas suas investigações bizarras, Jekyll
tinha desenvolvido um composto solúvel que, ingerido, lhe permitia
transformar-se numa outra manifestação de si mesmo, a consubstanciação de todos
os maus instintos, prazeres infames e pecados mortais que compartilhava, na sua
dualidade moral, com o lado altruísta, honesto e benemérito da sua
personalidade. Hyde era essa manifestação, o lado negro do respeitável Dr.
Jekyll. Inebriado, a princípio, com a sua descoberta, associando o fruir do
pecado, através de Hyde, com a liberdade, cedo este assume relevo sobre o
médico. Por fim, enredado no meio dos crimes vis do seu lado maligno, Jekyll
assiste progressivamente ao seu desvanecimento, e à preponderância definitiva
de Hyde. É num último assomo de lucidez, já transfigurado no seu duplo
hediondo, que comete suicídio de forma a privar o mundo de semelhante monstro.
O
Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde não é único no
seu género. Pertence à literatura que se serve da figura, originária do
folclore alemão, do doppelgänger, um duplo ou gémeo obsessivo e corrupto,
para a qual contribuíram E.T.A. Hoffmann, na novela O Elixir do Diabo, Edgar Allan Poe, no conto William Wilson ou Fiódor Dostoiévski, com o romance O Duplo. Todavia, fá-lo sob uma certa
via “científica” que o tornou tão popular, num século em que surgiu e se
popularizou o espiritismo de Allan Kardec, seguido, por exemplo, por uma figura
tão respeitável como Sir Arthur Conan Doyle, médico de formação. Através desta
via, Stevenson expõe um dos mais profundos traços do seu tempo, a dualidade
moral que fez do século XIX simultaneamente o palco de um dos maiores avanços
materiais da humanidade, com a Revolução Industrial, e a incubação, seguindo a
periodização de Eric Hobsbawm, historiador especialista na referida centúria
que baliza de 1789 a 1914, de uma das guerras mais mortíferas da história, a
Primeira Guerra Mundial.
O cúmulo dessa dualidade foi o período vitoriano, correspondente ao
reinado da rainha Vitória (1837-1901), que podemos definir como a
materialização da expressão “vícios privados, virtudes públicas” tão bem
aplicável ao seu próprio filho, o príncipe Eduardo (futuro Eduardo VII), cuja
vida privada dissoluta contrastava com a representação oficial da monarquia que
exerceu pelo Império Britânico. Em evidente contraste com os rígidos princípios
e etiquetas, este período assistiu a um aumento sem precedentes, até então, de
publicações literárias de carácter erótico cujo melhor exemplo é Eveline, As Aventuras Amorosas de uma Dama
Vitoriana, com o seu manancial de duplo incesto e outras perversões
praticadas por respeitáveis cavalheiros ingleses. Não é exclusivo de
Inglaterra, em Portugal, Cândido de Figueiredo, filólogo, lexicógrafo,
presidente da Academia de Ciências de Lisboa e sócio fundador da Sociedade de
Geografia de Lisboa, publicou clandestinamente uma novela erótica de muito
sucesso, Entre Lençóis.
É muito interessante notar que O
Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde (1886) precedeu em apenas dois
anos os crimes brutais do serial killer Jack,
o Estripador (1888). Pese embora continue um caso por resolver, persistem
suspeitas de que o assassino tivesse formação médica, dados os detalhes
cirúrgicos das suas mutilações, e equaciona-se a possibilidade de ser oriundo
de um estrato social elevado, razão pela qual terá escapado ao espectro das
investigações policiais, uma clara analogia com a novela de Stevenson.