sexta-feira, 9 de novembro de 2018

"O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde" de Robert Louis Stevenson

E das agonias de um ataque de tuberculose de Robert Louis Stevenson, eis que surgiu a novela alegórica que melhor definiu a psique vitoriana. O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde (também conhecido como O Médico e o Monstro) constitui hoje parte do imaginário ocidental mas, creio, tem sido dada pouca relevância ao contributo que representa para desvendar a psicologia oitocentista.

Robert Louis Stevenson (1850-1894)

No sentido de expor o meu ponto de vista, impõe-se primeiro um resumo da acção da novela. Durante um dos seus passeios dominicais, G. J. Utterson, advogado, toma conhecimento de um bizarro acto de brutalidade. O seu primo Richard Enfield testemunhara um sujeito mal-encarado, de estatura baixa, cuja característica predominante era a de uma disformidade impalpável que causava repulsa em todas as pessoas que o avistavam, a abalroar uma criança com quem se cruza, pisando-a indiferentemente. Confrontado com a indignação de Enfield e a ira dos familiares da menina, o sujeito, que se apresenta como Edward Hyde, é intimado a pagar uma avultada compensação à vítima de forma a evitar o escândalo. Para aumentar a surpresa do advogado, o cheque com que é paga a indemnização porta o nome do Dr. Henry Jekyll, seu amigo e cliente. Semelhante revelação faz Utterson questionar-se sobre a natureza das relações entre o amigo e Hyde, próxima ao ponto de Jekyll ter outorgado um testamento que faz do último o seu único herdeiro.

Após nova ignomínia, alguns meses mais tarde, com o assassinato do deputado Carew às mãos de Hyde, Utterson vê-se forçado a investigar o amigo que lhe assegura livrar-se em definitivo da influência de tal indivíduo sanguinário. Momentaneamente liberto da sujeição ao Sr. Hyde, o Dr. Jekyll retoma uma vida exemplar, de filantropia e caridade aos mais desfavorecidos apenas para, pouco depois, recair numa estranha reclusão auto-imposta. É com apreensão que Utterson, intrigado com estas novas circunstâncias, recebe o mordomo de Jekyll, Poole, que lhe confidencia a suspeição do regresso do Sr. Hyde e do, na perspectiva do criado, consequente assassinato do amo. Hyde, pois dele se tratava, enclausurado no gabinete de Jekyll, comete suicídio assim que Poole e Utterson conseguem forçar a porta da divisão.

Nos papéis em cima da secretária está a resposta para estes enigmas: a descoberta científica de Henry Jekyll capaz de materializar a divisão da alma numa dupla existência física, a virtuosa e a ignominiosa. Nas suas investigações bizarras, Jekyll tinha desenvolvido um composto solúvel que, ingerido, lhe permitia transformar-se numa outra manifestação de si mesmo, a consubstanciação de todos os maus instintos, prazeres infames e pecados mortais que compartilhava, na sua dualidade moral, com o lado altruísta, honesto e benemérito da sua personalidade. Hyde era essa manifestação, o lado negro do respeitável Dr. Jekyll. Inebriado, a princípio, com a sua descoberta, associando o fruir do pecado, através de Hyde, com a liberdade, cedo este assume relevo sobre o médico. Por fim, enredado no meio dos crimes vis do seu lado maligno, Jekyll assiste progressivamente ao seu desvanecimento, e à preponderância definitiva de Hyde. É num último assomo de lucidez, já transfigurado no seu duplo hediondo, que comete suicídio de forma a privar o mundo de semelhante monstro.
 
Richard Mansfield, numa adaptação dramatúrgica da obra
O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde não é único no seu género. Pertence à literatura que se serve da figura, originária do folclore alemão, do doppelgänger, um duplo ou gémeo obsessivo e corrupto, para a qual contribuíram E.T.A. Hoffmann, na novela O Elixir do Diabo, Edgar Allan Poe, no conto William Wilson ou Fiódor Dostoiévski, com o romance O Duplo. Todavia, fá-lo sob uma certa via “científica” que o tornou tão popular, num século em que surgiu e se popularizou o espiritismo de Allan Kardec, seguido, por exemplo, por uma figura tão respeitável como Sir Arthur Conan Doyle, médico de formação. Através desta via, Stevenson expõe um dos mais profundos traços do seu tempo, a dualidade moral que fez do século XIX simultaneamente o palco de um dos maiores avanços materiais da humanidade, com a Revolução Industrial, e a incubação, seguindo a periodização de Eric Hobsbawm, historiador especialista na referida centúria que baliza de 1789 a 1914, de uma das guerras mais mortíferas da história, a Primeira Guerra Mundial.
 
Poster anunciando a publicação de O Médico e o Monstro
O cúmulo dessa dualidade foi o período vitoriano, correspondente ao reinado da rainha Vitória (1837-1901), que podemos definir como a materialização da expressão “vícios privados, virtudes públicas” tão bem aplicável ao seu próprio filho, o príncipe Eduardo (futuro Eduardo VII), cuja vida privada dissoluta contrastava com a representação oficial da monarquia que exerceu pelo Império Britânico. Em evidente contraste com os rígidos princípios e etiquetas, este período assistiu a um aumento sem precedentes, até então, de publicações literárias de carácter erótico cujo melhor exemplo é Eveline, As Aventuras Amorosas de uma Dama Vitoriana, com o seu manancial de duplo incesto e outras perversões praticadas por respeitáveis cavalheiros ingleses. Não é exclusivo de Inglaterra, em Portugal, Cândido de Figueiredo, filólogo, lexicógrafo, presidente da Academia de Ciências de Lisboa e sócio fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa, publicou clandestinamente uma novela erótica de muito sucesso, Entre Lençóis.
 
Dr. Thomas Neil Cream (1850-1892), médico, um dos suspeitos do caso Jack, o Estripador
É muito interessante notar que O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde (1886) precedeu em apenas dois anos os crimes brutais do serial killer Jack, o Estripador (1888). Pese embora continue um caso por resolver, persistem suspeitas de que o assassino tivesse formação médica, dados os detalhes cirúrgicos das suas mutilações, e equaciona-se a possibilidade de ser oriundo de um estrato social elevado, razão pela qual terá escapado ao espectro das investigações policiais, uma clara analogia com a novela de Stevenson.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

"Carta ao Pai" de Franz Kafka

É difícil catalogar Carta ao Pai. À partida, parece óbvia a sua inclusão no antiquíssimo género literário confessional criado por Santo Agostinho, no século IV d.C., para o qual contribuíram nomes tão sonantes como Rousseau e Tolstói. Na verdade, Carta ao Pai vai para além dos limites da confissão autobiográfica para ficcionar o mundo interior do autor, porque, tal como o próprio Kafka afirma, a escrita constitui para si “uma tentativa de me tornar independente, um ensaio de fuga”. Só escrevendo Kafka é capaz de se libertar, mesmo que por instantes, dos tormentos que o assombram e exorcizar os seus complexos. Desta forma, é propositadamente incerta a barreira entre o real e o ficcionado, a verdade e o seu recontar nesta obra que pretende traçar a origem desses males.
 
Primeira obra do género confessional
Começando por delinear a genealogia dos caracteres familiares num binómio pai/mãe (Kafka/Löwy), que reconhece ter herdado num equilíbrio desproporcional, Kafka associa a sua aguda sensibilidade, timidez e obstinação ao ramo Löwy, enquanto expõe a herança Kafka apenas como o resultado da manifestação do seu carácter possante, dominador, autoritário e irascível. Figura de referência da sua infância e juventude, o pai assumir-se-á sempre na vida de Franz como a medida de todas as coisas, a causa de todos os males e, pela educação rígida e fraqueza hipócrita em não seguir os próprios preceitos que lhe impõe, a razão da sua incapacidade para uma vida plena e saudável. Constantemente ausente na primeira infância devido ao trabalho absorvente da loja que criou, Hermann Kafka povoa as memórias mais antigas do filho com recriminações constantes, incompreensão e falta de aprovação, não falando já de carinho, pois Franz, no seu malnutrido lado emocional, não almejava sequer ao carinho paternal.
 
Hermann Kafka (1854-1931) e Julie Löwy (1856-1934), pais de Kafka
Outra experiência de infância irá condicionar Kafka filho, a relação mutável com a loja. Inicialmente vivida como ponto de encontro com a comunidade, foco de carinho exterior, surpresa, aprendizagem e de contacto íntimo com Hermann, a falta de paciência e a forma humilhante como este passa a tratar os empregados contratados, à medida que o estabelecimento vingava, tornaram Franz avesso ao local. A mera menção à loja é-lhe penosa, pelo sentimento de culpa que desenvolveu para com os funcionários, que tentou compensar pelos maltratos do patrão, seu pai. Neste sentido, a escolha futura da profissão não tomará sequer em consideração o negócio familiar. Kafka enveredará pelo ramo das seguradoras onde, na sua opinião, é explorado, racionalizando a sua complacência com esse mesmo sentimento de culpa e inferioridade desenvolvido na infância. Sentimento esse que o persegue ao longo da vida, dando origem a um pessimismo entranhado e uma incapacidade de se valorizar, mesmo perante o sucesso escolar que granjeou na escola e na universidade, que assume como uma farsa, esperando a cada momento ser desmascarado.

O foco central da obra é, contudo, a impossibilidade que Kafka reconhece em contrair matrimónio. Partindo da associação que estabeleceu entre sexo extraconjugal e sujidade, sem dúvida uma referência à sífilis, comum entre prostitutas na sua época, Franz só concebe a limpeza, sexual e moral, e felicidade superior no matrimónio. O casamento é para si uma forma de se afirmar como homem e, sobretudo, de consumar a plena independência da influência nefasta do pai. Todavia, acaba por chegar à conclusão de que também o casamento lhe é barrado, porque, se bem que uma fuga, é igualmente uma comunhão mais estreita com a figura paterna, orgulhoso do seu matrimónio harmonioso, que Kafka assume impossível de superar, contaminado que está com a presença de Hermann.
 
Milena Jesenská (1896-1944), uma das paixões platónicas de Kafka
Carta ao Pai é, sobretudo, uma fonte de referências autobiográficas, que os biógrafos de Franz Kafka têm utilizado com cuidado, tentando destrinçar a ficção da verdade nela narrada. É, também, mais relevante para o leitor comum, um vector de acesso à mentalidade kafkiana, permitindo-o nortear-se pelo mundo do absurdo e do ilógico que o caracteriza. Numa leitura superficial, como foi a minha, reparei na esporádica caracterização de si próprio como “verme”, impossível de dissociar de A Metamorfose. Certamente uma leitura mais cuidada, tendo em conta outros textos como O Castelo e O Processo, que não li, descobrirão mais conexões.

sábado, 13 de outubro de 2018

"A Metamorfose" de Franz Kafka

A Metamorfose constitui a prova de como um livro tão pequeno pode causar um impacto tão grande no panorama literário. Em pouco mais de noventa páginas, Kafka antecipou aquilo que seriam as tendências literárias das seguintes décadas.

O enredo da novela é relativamente simples e amplamente conhecido nos seus contornos gerais. Gregor Samsa, um caixeiro-viajante de uma firma local, acorda uma bela manhã transformado num insecto monstruoso, que Nabokov, com formação em entomologia, classificou como um besouro. Consciente da sua transformação, mantendo as memórias da sua vida anterior, e perdendo a capacidade da fala escassos minutos após acordar metamorfoseado, Gregor é encarado com horror pela família, constituída pelos pais e uma irmã mais nova, incapazes de processar o fatídico evento. Impossibilitado de comunicar com o mundo exterior, Samsa vê a sua mente aprisionada progressivamente deteriorar-se numa confusão absurda de pensamentos e resoluções obsessivas e incapazes de se consubstanciar, misturada com uma galopante desumanização, fruto das suas pulsões de insecto. A família que ele, sozinho, reergueu da bancarrota da loja paterna e sustentou durante cinco anos, vê-se forçada a trabalhar para sobreviver – o pai como paquete num banco, a mãe como costureira e a irmã como empregada de comércio – enquanto acarreta com o fardo que é cuidar de si. À medida que a vida familiar se recompõe no meio da necessidade, o pai reergue-se da reforma antecipada a que estava votado, a mãe melhora dos ataques de asma enquanto vai trabalhando e assumindo as funções da empregada doméstica que tiveram que despedir, e a irmã cresce viçosa, com o gosto pelo violino e o novo emprego, Gregor definha a olhos vistos, é cada vez mais insecto e cada vez menos humano. Vítima de incompreensão, abusos e violência, acaba por morrer da infecção de uma ferida provocada pelo pai, que tanto apoiara antes, ignorado por todos.

Morte de Gregor Samsa, in Famous Fantastic Mysteries (1953)

A concepção desta novela remonta a 1912 mas seria preciso esperar até 1915 para a ver publicada. Não creio que tenha sido por mero acaso, salvo toda e qualquer decisão pessoal do autor, a verdade é que o flagelo da Primeira Guerra Mundial tornou possível a audiência a semelhante obra que narra o desespero e a angústia humanas. A Metamorfose intuiu aquilo que seria o prolífico movimento literário entre as guerras mundiais, o absurdismo, que pôs em causa as certezas europeias do século XIX, numa dúvida constante das realizações humanas, o sentido do ridículo da vida e o valor dessa mesma vida numa sociedade capaz de ceifar conscientemente dezenas de milhões em prol, na primeira Grande Guerra, de interesses nacionais e dinásticos comezinhos, e na segunda, da vingança e da afirmação de poder fascista das nações derrotadas na anterior.

Franz Kafka (1883-1924)

Não posso deixar de considerar que há outro grande vector histórico manifestado em Kafka. As inquietações e sofrimentos de Gregor Samsa são filhas da ruptura psicológica provocada pela Revolução Industrial no modo de vida das camadas mais pobres da sociedade. A exploração dos trabalhadores com salários miseráveis, sem direitos ou protecção laboral e condições de trabalho deploráveis num ambiente fabril incessante, muitas das vezes de doze a dezasseis horas diárias, fidedignamente descritas por Dickens em Oliver Twist e David Copperfield, que viveu esta realidade de perto na sua juventude, romperam com o acesso ao descanso e às horas de ócio vividas por estas camadas no mundo pré-industrial. Desta forma, a metamorfose de Samsa pode ser vista como uma reacção exacerbada à realidade laboral que o oprimia todos os dias da sua vida nos últimos cinco anos.

Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927)

São inevitáveis as comparações a Akutagawa, escritor japonês contemporâneo de Kafka. A Metamorfose (1915) tem o seu equivalente japonês em Patas de Cavalo (1925), em que Oshino Hanzaburo, empregado de escritório de uma multinacional nipónica, morre por engano e é devolvido à vida, três dias após o óbito, com as patas de um cavalo, dado as suas pernas terem gangrenado enquanto esperava no purgatório e só lá haver disponível um equídeo.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

"O Samurai Negro" de João Paulo Oliveira e Costa

A premissa é aliciante: a epopeia lusitana em terras nipónicas narrada em jeito de romance pela mão de um eminente historiador com vasta obra académica publicada sobre o mesmo período, primeiro volume de uma anunciada trilogia, já com o nome de cada tomo definido, Xogum e Chamas de Nagasáqui, respectivamente. A realidade desaponta e revela excessiva a publicidade que rodeia a obra. Não é o primeiro romance histórico de João Paulo Oliveira e Costa que leio. Conheço-lhe o estilo e a estrutura narrativa. Seria lícito pensar que, decorridos oito anos da publicação do seu primeiro romance, tivesse aprimorado a sua escrita ou, no mínimo, sustido a qualidade do primeiro, pelo contrário, O Samurai Negro é inferior a O Império dos Pardais.
 
João Paulo Oliveira e Costa (n. 1962)
Seguindo a informação da contracapa, a história versa sobre três personagens centrais. Pedro da Fonseca, luso-brasileiro, com raízes Tupi que, depois da devastação da propriedade da família pelo ataque de retaliação que matou o pai – resultando do assassínio sumário da mãe adultera –, parte à procura do tio, Álvaro da Fonseca. A acompanha-lo, por sua livre vontade, o amigo Carlos, um príncipe do Congo, cristão convertido enviado a Lisboa com o propósito de se tornar bispo e assim consolidar a aliança do rei de Portugal com o rei do Congo, que, demasiado fogoso para a vida eclesiástica, se instalara no Brasil após naufrágio em direcção a casa. Depois de uma viagem de mais de um ano, da qual pouco nos é relatado, chegam ao Japão, à cidade de Nagasáqui, sede da presença portuguesa, onde encontram Ana, uma japonesa convertida ao cristianismo que será o centro de um triângulo amoroso que percorre todo o romance. Álvaro da Fonseca é um pirata/empresário português nos mares do Sul, com pouso no Japão, onde protege não só a cidade de Nagasáqui como a missão jesuíta que está a evangelizar o país do Sol nascente. Pelo meio, vemo-nos mergulhados nas intrigas doutrinárias da Igreja Católica no oriente, com a Companhia de Jesus a propor uma adaptação do culto e da doutrina católicas ao contexto japonês e a Cúria papal a advogar o estrito cumprimento dos dogmas e práticas originais. Neste contexto, surge um personagem recorrente, Giuseppe, um enviado de um cardeal romano, nunca denominado, para espiar a acção dos jesuítas e reunir informação para uma decisão definitiva do Papado quanto a estas questões. Todas estas personagens, bem como todos os jesuítas presentes, giram à volta de Oda Nobunaga, um poderoso daimyo, senhor feudal, figura histórica que deu início ao período Azuchi-Momoyama (1573-1603), tentando unificar o Japão sob o seu domínio absoluto após pôr fim ao antigo Xogunato Ashikaga, que governava o país em nome do imperador.
 
Oda Nobunaga (1534-1582)
Oliveira e Costa comete um erro crasso, apresenta-nos um romance histórico quando, na verdade, escreveu antes um livro de história narrativa, sem o rigor científico, a metodologia e a indicação das fontes que este requer, disfarçado de romance. Há um pulular incessante de personagens, várias só aparecem uma vez, para morrerem no esquecimento logo de seguida, sem qualquer necessidade narrativa, muito menos desenvolvimento de um perfil psicológico, a não ser acrescentar tonalidade histórica. Tudo se subverte à descrição histórica, desde a paisagem aos mínimos detalhes. A chegada da nau a Nagasáqui, veículo de comércio português e meio de comunicação administrativo do império no oriente, que Costa nos relembra chamar-se “nau do trato”, ou kurofune (literalmente, barco negro em japonês), é pretexto para explicar não só a proveniência de cada mercadoria, mas todo o complicado processo mercantil que permitiu a sua chegada ao Japão, ao mais ínfimo pormenor. Personagens inteiras são criadas para apresentar a intrincada presença lusitana na Ásia, tal como Abdullah, o espião muçulmano de Malaca, servidor do sultão de Áden e da Sublime Porta, que Costa não explica tratar-se do Império Otomano e de um seu Estado vassalo, acérrimo adversário do Império Português do Oriente, que apenas aparece duas vezes numa tentativa gorada de frustrar as boas relações com os japoneses. Outra passagem, o terramoto ocorrido horas após a chegada de Pedro e Carlos a Nagasáqui, é o pretexto para uma analepse que nos leva à Lisboa de 1531 assolada por um violento sismo, ao longo de um capítulo, apenas para explicar que Álvaro, o rude pirata, tinha pânico de tremores de terra, ao ponto de sofrer de incontinência, facto que nunca mais é referido, não obedecendo a qualquer propósito de desenvolvimento da acção.

Em contrapartida, Oliveira e Costa assume serem do conhecimento geral certos termos dificilmente entendidos por quem não é da área. Deste modo, é feita referência constante aos inacianos sem clarificar que se trata de um sinónimo de padre da Companhia de Jesus, proveniente do nome do seu fundador, Santo Inácio de Loyola. Bem assim, vemos constantemente utilizado o termo nanbanjin, que o autor não esclarece tratar-se da expressão utilizada pelos japoneses para designar os portugueses, bárbaros do Sul, para ser preciso, devido ao primeiro contacto luso-nipónico estabelecido em Tanegashima (1543), ilha do Sul do arquipélago do Japão.
 
Biombo Namban do Museu Nacional Soares dos Reis representando o kurofune

O português em que foi escrito O Samurai Negro é outro ponto de incógnita. Logo nas primeiras páginas, damos conta de uma tentativa para recriar o português quinhentista sem, contudo, a coragem de enveredar por um completo uso da estrutura desse formato antigo. Assim, deparamo-nos com a nossa língua moderna com contornos que relembram antes o português do Brasil. Essa tentativa não é de todo impossível, foi realizada com sucesso no romance histórico A Casa do Pó, de Fernando Campos, fruto do labor de onze anos, galardoado com o Prémio Literário Município de Lisboa. Passado igualmente no século XVI, todo a obra está escrita num português quinhentista recriado com minúcia naquele que é um dos romances históricos nacionais mais originais.
 
O Império dos Pardais (2008)
Na capa de O Império dos Pardais, na edição do Círculo de Leitores, pela mão de José Rodrigues dos Santos, encontramos a seguinte frase: “amor, sexo, traição, espionagem, estão aqui todos os ingredientes necessários”. A obra faz jus a essa descrição e apresenta-nos, entre outras cenas, uma violação, uma orgia com um final macabro e, o mais flagrante, uma relação incestuosa, mantida durante décadas, entre pai e filha. Bizarramente, ou talvez não, O Samurai Negro tem também a sua quota-parte de incesto. Em causa está a relação entre Giuseppe, o enviado do cardeal, nomeado bispo no seu regresso, e a sua irmã Flávia. Inicialmente descrita como a companheira do italiano, de quem este tanto se dói em abandonar para cumprir a missão que lhe foi incumbida e a quem tenta ser fiel durante boa parte da viagem, percebemos mais tarde que é casada, e que Giuseppe não é um simples amante, mas também o seu próprio irmão, de quem, inclusive, chega a ter uma filha, Giovanna.
 
Detalhe de um biombo namban, c. de 1593-1600, representando mercadores portugueses no Japão
Olho com estranheza a persistência do incesto nos seus romances. Numa Europa cristianizada há mais de mil anos, ambos os romances se passam no século XVI, com uma ênfase tão acirrada da Igreja Católica na família como núcleo dos bons princípios cristãos, o incesto não era de todo prática generalizada em qualquer estrato da sociedade, era, isso sim, a excepção. A Europa do Renascimento não é a Roma imperial na sua decadência, ou o Egipto antigo, em que era permitido ao faraó, como prática corrente, casar com as filhas, ou outros membros do sexo feminino da sua família (veja-se o caso de Ptolomeu XIII casado com a irmã Cleópatra VII) com vista à perpetuação da linhagem real, tida como divina. Roma, onde vivem Giuseppe e Flávia, já não é a Roma dos Bórgias e do suposto incesto entre Lucrécia e Cesare, hoje contestado por diversos historiadores como parte da propaganda Protestante de descredibilização da Igreja Católica.

Como cereja no topo do bolo, durante uma das peripécias do romance, onde se planeia o assalto a um templo budista no Vietname orquestrado pelos piratas de Álvaro da Fonseca a soldo de um rico comerciante chinês, são postas na boca desse mesmo chinês as seguintes palavras: “Se eles, Han, eram todos parecidos entre si, e os japões, os viets ou os siameses também, como era possível que os portugueses, pelo contrário, fossem todos tão diferentes?” Na sucinta simplicidade desta frase está contida uma clara mancha de racismo. A intenção, percebe-se, pode ter sido a de evidenciar a mestiçagem praticada pelos lusitanos no seu vasto império, como forma de fazer face ao problema constante de falta de população. Todavia, não é lícito crer que um chinês, do século XVI ou do século XXI, pensasse que toda a sua etnia, bem como a japonesa, vietnamita e tailandesa, apresenta uma tão grande homogeneidade de feições praticamente indistinguíveis. Está cientificamente provado que somos nós, caucasianos, a não conseguir diferençar correctamente as feições extremo-orientais. Um chinês reconhece nuances nos rostos dos seus conterrâneos impalpáveis ao olhar europeu. Bem assim, o mesmo acontece em sentido inverso.
 
Fernando Campos (1924-2017)
Durante o congresso internacional «50 Anos de Historiografia: Balanço e Prospectiva» organizado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto entre 3 e 4 de Maio de 2012, o professor Patrick J. Geary apresentou a palestra Writing the Nation: Historians and National Identities from the Nineteenth to the Twenty-first centuries/ Escrever a Nação: Historiadores e Identidades Nacionais, séculos XIX a XXI. Esta versou sobre o papel dos historiadores no desenvolvimento dos nacionalismos europeus, no modo como, na sua óptica, a historiografia, como profissão, tem estado associada à defesa da nação como uma unidade cultural e política. Dedicou-se ainda à forma como este papel mudou ao longo do tempo. De facto, com o abandono da grande síntese, cujo último esforço notável foi o sistema-mundo de Fernand Braudel, a historiografia tem-se evolado na micro-história e nos estudos muito especializados e compartimentados, descorando o global em prol do circunscrito. Semelhante posição, constata Geary, deixa a sede dos públicos nacionais pelo conhecimento geral da sua própria história destinada a ser saciada por um conjunto de aspirantes a historiadores, normalmente jornalistas, que a popularizam sob a forma de romances históricos com muito pouca qualidade. Com vista a apresentar uma alternativa, Patrick Geary apresenta Alexandre Herculano, não só um distinto historiador do seu tempo, com provas académicas reconhecidas, inclusive, a nível internacional, mas também escritor de romances históricos de grande rigor científico, divulgando teses formuladas nas suas investigações e episódios da história portuguesa e peninsular. Em suma, não é impossível conjugar o rigor científico com um romance de qualidade nos nossos tempos. Escapou a Geary Os Reis Malditos, que constituem um exemplo incontornável, do qual O Samurai Negro está muito aquém. Em contrapartida, o panorama literário português dos últimos anos já tem um óptimo precedente no que a romances históricos de qualidade dizem respeito, aberto por Fernando Campos com A Casa do Pó, e obras posteriores como O Cavaleiro da Águia. É este o exemplo que deve ser imolado por historiadores ou romancistas que pretendam apresentar a história de Portugal sob um prisma mais acessível contanto que verossímil e historicamente credível.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

"O Amante de Lady Chatterley" de D.H. Lawrence


À procura da Enciclopédia da História Universal no meio das minhas estantes descobri O Amante de Lady Chatterley, que achava perdido. Recordo-me perfeitamente do momento da sua leitura, o verão de 2010. Sei-o porque a edição que possuo pertence a uma colecção lançada pela revista Visão nesse mesmo verão intitulada Livros Proibidos. Na altura, não creio ter compreendido o significado intrínseco da obra, apesar do prefácio do autor, era demasiado novo. Hoje, ao olhar para trás, tentando reordenar as memórias que guardo da sua leitura, deparo-me com algumas reflexões.

O Amante de Lady Chatterley escrito por D. H. Lawrence, polémico escritor britânico de início do século XX, foi publicado em 1928, não no Reino Unido, mas em Itália. Interdito no seu país, só aparecerá na íntegra em 1960. É ainda a pudibunda moral vitoriana que domina a Inglaterra e que tenta fazer de Lawrence um novo Oscar Wilde, de quem se livrou por meio de um processo judicial infame. Processo esse que serviu para calar a sua filosofia subversiva, expressamente contida em A Alma do Homem e o Socialismo, onde – excluindo aquilo que serão as suas acertadas previsões para o futuro do socialismo – desconstrói a democracia como sendo a ditadura da maioria, desmascara a hipocrisia da caridade e almeja a uma sociedade em que não mais seja necessária, deixando de ser o descargo de consciência de uma classe impunemente exploradora do seu semelhante. Após a prisão, e depois da escrita do longo desabafo intelectual que é De Profundis e da publicação das agruras da prisão através de A Balada do Cárcere de Reading, Wilde morre, alquebrado e atormentado. Contudo, em 1928 já não reina Vitória, nem o legado da sociedade que encabeçou tem a mesma força, abalada pela guerra. Lawrence não é preso e é-lhe permitida a publicação, se bem que censurada, do seu romance.
 
D.H. Lawrence (1885-1930)

Em que consiste, no entanto, a polémica que semelhante obra causou? Trata-se da história de uma mulher da alta burguesia, Constance (Connie), nobre pelo casamento com Sir Clifford Chatterley, paraplégico após participação na Primeira Guerra Mundial. Vivendo uma paixão idílica com o marido nos meses imediatamente anteriores à guerra, a relação de ambos será seriamente afectada pela mutilação de Clifford, que o torna sexualmente inválido e o leva a um isolamento auto-imposto com contornos de paranóia. Depois de um breve caso com um dramaturgo ambiciosamente vazio, Michaelis, Connie apaixona-se pelo couteiro da sua propriedade, Oliver Mellors. Com ele irá redescobrir a sua sexualidade latente, e perceber que não consegue viver unicamente do espírito, chegando à conclusão que o amor não pode desenvolver-se sem essa componente física. Connie acaba por engravidar e, na recta final da obra, troca definitivamente Clifford por Mellors.

Três temas despertaram controvérsia: (1) a admissão do desejo sexual feminino, negado até ao extremo, ao ponto de se considerar histéricas, durante largas décadas, mulheres sexualmente frustradas, não raras vezes internadas em hospitais psiquiátricos; (2) a subversão do sistema muito britânico de classes, através do romance de um membro da nobreza, do género feminino, pasme-se, com um proletário; (3) a linguagem sexualmente explícita, sem recurso a eufemismos, num claro assumir da autoria da obra, sem a protecção do anonimato. À parte isso, creio que Lawrence absorve muito bem o espírito da sua época. Dilacerada pela Primeira Guerra Mundial, a guerra para acabar com todas as guerras, Lady Chatterley pinta a morte da Belle Époque, o idílio que teria levado a Europa rumo à democratização plena e à lenta, mas firme, emancipação feminina e ao predomínio benéfico da arte na sociedade. Há em Connie algo da inquietação de Gregor Samsa, na sua busca de um sentido perdido, que a guerra destruiu. Clifford, por outro lado, ao adquirir a imensa parafernália radiofónica, sintoniza directamente com o discurso fascista de Hitler, consumido na busca pela sua virilidade arruinada. 

É muito interessante constatar que a década de 1920 se escandalizasse com semelhante grito de emancipação feminina. Para a posteridade, no que ao mundo anglo-saxónico diz respeito, conotada como os “loucos anos 20”, esta será a década do corte de cabelo à rapaz e dos vestidos ligeiramente abaixo do joelho, uma revolução na moda feminina, das estrelas de Hollywood assumidamente promíscuas como Marlene Dietrich, da Paris, Berlim, Londres e Nova Iorque dos cabarets, do jazz e do foxtrot, galvanizadores contra a moral conservadora. No fundo, o livro expõe uma realidade vivida mas impronunciável, assim parece, senão à noite, num bar, após vários cocktails.
 
Pintura central do tríptico Metropolis (1927-28), de Otto Dix

Suspensa pela Grande Depressão e, logo de seguida, pelo flagelo da Segunda Guerra Mundial, amordaçada pela neurótica tentativa de retorno à normalidade que foi a década de 1950, seria preciso esperar até aos anos 60 para finalmente cair o véu da censura que hipocritamente pairava sobre O Amante de Lady Chatterley. Só a década de divulgação da nova teorização do movimento feminista por Simone de Beauvoir para redescobrir esta obra. Não é por acaso que coincide com os anos de libertação sexual. Lawrence almejou essa libertação, ocorrida três décadas após a sua morte. Esta obra foi um importante contributo nesse sentido, e a polémica que a rodeou não a silenciou, serviu, isso sim, para a popularizar.

                                             Lady Chatterley (2006), realizado por Pascale Ferran