sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

"Uma Aventura de Astérix, o Gaulês" de René Goscinny e Albert Uderzo

 

Qual é o valor da literatura? Qual o papel que representa na vida dos seus leitores? E, por extensão, qual o papel desempenhado pela literatura nas sociedades humanas? Três grandes questões que já fizeram correr rios de tinta, inspiraram reflexões, livros, ensaios filosóficos e trabalhos académicos sem conta. Não é minha pretensão respondê-las ou sequer acrescentar o meu parco contributo a este debate. Peço apenas aos leitores destas linhas que, durante alguns minutos, possam reflectir sobre o tema. Diria mais: pensem, sobretudo, no valor e importância da literatura nas suas próprias vidas.

Após esta breve meditação, peço-vos que tentem lembrar-se das vossas primeiras leituras, aquelas que, ainda em tenra idade, os fizeram sonhar e embarcar nas primeiras viagens literárias. As respostas serão certamente variadas. Contudo, estou seguro de que, em diversos casos, entre as primeiras leituras de um número apreciável de entre vós se encontrou algum álbum de Astérix. Pessoalmente, posso asseverar-vos que faço parte desse grupo. Li As 1001 Horas de Astérix com cerca de 9 anos e não só o álbum plantou em mim as sementes do que viria a ser o meu perene amor pela literatura, alguns anos mais tarde, como posso traçar uma linha ininterrupta entre ele e o meu interesse longevo pelas Mil e Uma Noites, que é a base de outro, ainda mais significativo, fascínio pelo Oriente.

René Goscinny (1926-1977)

 

Qual o motivo deste prólogo? Serve como fundamento para a seguinte afirmação: os álbuns de Astérix são uma das melhores portas de entrada no belo, labiríntico e vivificante edifício que é a literatura – poderia dizer outro tanto sobre Tintim e, talvez, Lucky Luke, mas não é deles que tratamos hoje. Os números falam por si. Os seus álbuns foram já traduzidos para 107 línguas e dialectos[1] e, até 2019, venderam-se 380 milhões de cópias a nível mundial[2]. Por comparação, até ao mesmo ano, Tintim foi traduzido para 110 línguas e vendeu 270 milhões de cópias[3]. Tamanha proporção não se deve apenas a bem-sucedidas campanhas de marketing, revelam, antes de mais, a qualidade das obras da dupla Goscinny e Uderzo, capazes de agradar a todas as idades, nacionalidades e tipos de público.

 

Albert Uderzo (1927-2020)

 

Se bem que um estudo aprofundado das causas deste sucesso e qualidade literária não se coadune com o espaço e meio destas parcas linhas, podemos fazer um exercício de aproximação. Comecemos pelo início. Os primeiros quadradinhos intitulados Uma Aventura de Astérix, o Gaulês surgiram a 29 de Outubro de 1959, no número inicial da revista Pilote – criação conjunta dos amigos e homens de letras e das artes Jean-Michel Charlier, Albert Uderzo, René Goscinny, Raymond Joly e Jean Hébrard. A revista tinha em mente a apresentação de um herói ligado à história de França. Goscinny e Uderzo juntaram-se e optaram pelo período romano. Tendo por base Vercingétorix, líder da resistência gaulesa às conquistas militares de Júlio César, os autores apropriaram-se do sufixo “rix” (que significa “rei” em gaulês) e definiram a letra A, primeira do alfabeto, como fórmula de base para a criação do nome do personagem principal, de onde provém Astérix. Para os seus companheiros gauleses bastou simplificar o sufixo “rix” para “ix”. A história inaugural findaria a serialização a 14 de Julho de 1960, sendo posteriormente publicada em formato de álbum pela Dargaud em 1961. As aventuras seguintes mantiveram a serialização inicial na Pilote, e consequente lançamento em álbum, até 1973, sendo Astérix na Córsega o último a seguir este esquema bipartido.

 

Simbologia Etimológica de Astérix

 

Capital na construção da narrativa é a simbologia etimológica dos nomes dos personagens. É este mecanismo que permite e alimenta a constante e inerente dinâmica satírica pela qual os álbuns de Goscinny e Uderzo são internacionalmente conhecidos. De facto, esta veia satírica e crítica está presente desde a génese da BD, como o prova a desconstrução do nome do protagonista, Astérix. Trata-se de um jogo com a fonética da palavra homófona “astérisque” (“asterisco”), de onde se podem retirar duas ilações mutuamente concordantes. A um nível superficial, na sua qualidade de asterisco, só poderia ser alguém de baixa estatura, tantas vezes alvo de surpresa pela astúcia e força, inesperadas em indivíduo tão pequeno. Num substrato mais profundo, é significativo que o nome da série se designe “Asterisco”, pois evidencia a intenção dos autores de que os álbuns funcionem como notas de rodapé, em jeito de comentário, à História.

 

1ª Aparição de Panoramix, retratado como um eremita no vol. 1 (ed. Meribérica, 1996)

 

Uma análise etimológica dos outros personagens que povoam a série fornece-nos mais pistas sobre este propósito glosador. Surgindo como personagem secundária de Astérix, Obélix, o carregador de menires, cedo se torna, logo a partir do segundo álbum, A Foice de Ouro, o seu companheiro inseparável. Obélix deriva da palavra francesa “obélisque” (“obelisco”), sugerindo uma comparação entre as suas formas arredondadas e bojudas com o formato das colunas egípcias homólogas, assim como uma referência indirecta ao seu trabalho. Ademais, “obelisk” ou “obelus” é um símbolo tipográfico, em forma de adaga, que serve de suporte e acompanha o asterisco, à imagem da amizade simbiótica com Astérix.

Exemplos de um jogo igualmente inteligente e divertido podem ser encontrados em Panoramix e Assurancetourix. O primeiro é o druida da aldeia, inventor da poção mágica. O seu nome advém de “panoramique” (“panorâmico”), isto é, alguém com visão panorâmica, sábio, capaz de discernir ao longe intenções e acontecimentos, previdente, dominando o horizonte circundante. O segundo, o bardo eternamente incompreendido, resulta da expressão “assurance tous risques” (“seguro contra todos os riscos”). Daqui se depreende uma pessoa capaz de sobreviver a todas as circunstâncias, naturalmente nefastas, pois está seguro, prevenido, contra todos os riscos.

 

Panoramix de traços suavizados, final do vol. 1 (ed. Meribérica,1996)

 

Num tom de fina caricatura política, Goscinny e Uderzo introduzem Abraracourcix, o chefe da aldeia dos irredutíveis. O nome esconde um trocadilho, “à bras raccourcis”, “de braços muito curtos” ou “a toda a força”. Ou seja, alguém com um falso sentido de importância, simultaneamente sempre pronto para a batalha, mas de braços muito curtos, cuja força não se equipara à sua jactância. Tendo em conta a sua caracterização física e o seu carácter, à luz do período histórico de surgimento de Astérix, o candidato mais provável para alvo desta sátira é o general De Gaulle. À imagem de De Gaulle, Abraracourcix é veterano de guerra, este das guerras galo-romanas, aquele da Segunda Guerra Mundial. Tal como De Gaulle, é obrigado a fugir da sua última batalha, numa debandada desenfreada, ficando, no entanto, doravante conhecido pela sua participação na mesma. Trata-se de uma clara alusão a Dunquerque e ao papel do general no conflito. A categoria de chefe “incontestável” da aldeia e a sua propensão para a pompa marcial relembram o estilo e a posição política de De Gaulle na França do pós-guerra. A reacção dos autores (que pode ser consultada aqui) a estas similitudes, quando confrontados em entrevista, é reveladora pela ambiguidade e duplo sentido das suas palavras.

Paralelamente, a decomposição dos nomes dos personagens romanos denota um estudo de carácter indicativo da sua função de antagonistas, tanto dos gauleses como da sociedade moderna, livre, democrática e pluralista. Tomemos como exemplo Caius Bonus e Marcus Sacapus, respectivamente o centurião e comandante da guarnição de Petibonum (uma das quatro que cercam a aldeia gaulesa) e o decurião, segundo na hierarquia. Quanto ao primeiro, Caius é um nome próprio latino relativamente comum, já Bonus vem de gratificação, vantagem, bonificação. O nosso Caius Bonificação é uma alegoria à ambição desmedida no exercício de cargos públicos. O segundo, Sacapus provém da expressão “sac à puces” (“saco de pulgas”). Marcus Saco de Pulgas, ou Pulguento, é, tal como o nome indica, um ser desagradável, sujo no sentido venal, de pouca confiança, sendo uma metáfora do político corrupto.

 

Astérix em Portugal

 

Astérix, o Gaulês chegou a Portugal com bastante rapidez, a 4 de Maio de 1961, pela mão da revista de BD Foguetão, números 1 a 13. Foi posteriormente (re)publicado na revista Cavaleiro Andante, entre 1961/2, nos números 510 a 525; e lançado em álbum em 1967, pela Editorial Íbis. Até 1972, a publicação em formato de livro ficou a cargo de uma parceria editorial entre a Íbis e a Livraria Bertrand Editora, ano em que a primeira é incorporada no grupo Bertrand. Doravante, os álbuns de Astérix contêm a chancela exclusiva da Bertrand até 1983. Durante um breve período, de 1987 a 1989, os direitos de publicação foram assumidos pela Difusão Verbo, que publicou o vol. 28, As 1001 Horas de Astérix e reeditou os três anteriores. De 1989 a 2003, os direitos passaram para a Meribérica (depois Meribérica/Liber, após fusão), que lançou em primeira mão os álbuns 29 a 32, e reeditou todos os anteriores. Desde 2004, os direitos estão na posse da Asa. A paralela publicação em periódicos manteve-se até ao vol. 26, A Odisseia de Astérix, passando pelas revistas Tintin (1968-1982) e Flecha (1978), e os jornais Diário Popular (suplemento Flecha 2000, 1985/6), Jornal da BD (1982-87) e Diário de Notícias (suplemento BDN, 1990/1).

 

Astérix e Obélix, de traços bem diferentes dos iniciais, vol. 5 (Meribérica,2002)

 

Com a passagem dos direitos de autor para a Asa veio uma nova tradução da maioria dos nomes de Astérix, que teve como fito aportuguesar as referências simbólicas da etimologia respectiva[4]. Em 2012, começou um processo de remasterização, em linha com as indicações expressas de Uderzo para novas reedições dos álbuns em todo o mundo[5]. Esta remasterização visou uma padronização de traços característicos de personagens, cenários e coloração, que eliminou gralhas, harmonizou os traços estilísticos num todo coerente e corrigiu alguns erros históricos.

Pese embora tenham a sua utilidade, estas alterações descaracterizaram a série. As novas traduções anulam a simbologia etimológica que esteve na origem de Astérix e que constitui o seu mais importante veículo de sátira social e crítica de costumes. A remasterização apagou os traços e processos evolutivos e criativos pelos quais passaram as personagens, nos seus longos anos de existência, impossibilitando uma leitura histórica da série.

Assim sendo, é recomendável a leitura das edições anteriores à Asa, pelo menos até ao vol. 32, Astérix e a Latraviata, (a partir daí os álbuns são exclusivos desta editora) de modo a ter acesso directo às traduções e ilustrações mais próximas dos originais franceses. Só este contacto permitirá um entendimento mais fino das origens, da tessitura narrativa, e sua evolução, e dos alvos visados pelas sátiras. De todas as edições disponíveis, as da Meribérica são as mais sistemáticas, incluindo todas as obras até à transição para a Asa.  

 

Considerações Finais

 

Tentemos, por fim, dar resposta, mesmo que apenas aproximada, à proposição inicial sobre as causas do sucesso e qualidade literária internacionalmente comprovados de Astérix. A um nível superficial, podemos sinalizar a grande permeabilidade da série em ser convertida em objectos de merchandising muito vendáveis. A tendência começou ainda nos anos de 1960, em França, com o lançamento de brinquedos coleccionáveis das personagens. Rapidamente esta capitalização ganhou outras proporções com a adaptação do primeiro volume para um filme de desenhos animados, em 1967, com mais oito lançamentos para o grande ecrã nas décadas seguintes. Quatro longas-metragens em formato live-action foram concebidas a partir de 1999, com grande adesão internacional. Desde então, a lista é interminável, contando, entre inúmeros produtos personalizados de todos os tipos e feitios, com quinze jogos de tabuleiro, quarenta videojogos e um parque temático perto de Paris.

 

Colecção particular de merchandising de Astérix (fonte: Twitter@Lulu6kat)

 

Todavia, se bem que esta enumeração, de dimensões pantagruélicas, possa esclarecer parte do enorme volume de vendas dos álbuns, não só não explica a sua totalidade, como nada diz sobre a qualidade literária da série. A crítica tem apresentado as suas teorias para a clarificação deste fenómeno. Uma parte afirma que Astérix é a metáfora da resistência da cultura e da língua francófonas contra a anglofonia cada vez mais dominante no globo, desde a década de 1950. Outra, por sua vez, vê na série a fonte da recuperação do orgulho francês, gravemente ferido após a derrota humilhante na Segunda Guerra Mundial e o colaboracionismo vergonhoso do regime de Vichy, através da redescoberta do passado gaulês da nação[6].  

Ambas as teorias sofrem, contudo, de uma falha: concentram-se exclusivamente em França e no contexto histórico-político inicial em que surgiu a série. Mesmo que sustentadas por evidências, sobretudo a segunda, a verdade é que apenas explicam parte da questão, o sucesso fulgurante que exerceu junto do público francês. Nada é dito quanto à igual popularidade internacional de Astérix. Convenhamos, o resto do mundo não se rege pela batuta do gosto e das exigências do orgulho franceses, por muito que isso os lisonjeasse.

É preciso, portanto, procurar a causa em outro lugar. Na minha opinião, a solução encontra-se, mais uma vez, na etimologia. Tal como demonstrei no início do texto, ao definir o nome do protagonista e, por extensão, da série como “Asterisco”, Goscinny e Uderzo não procuravam apenas evidenciar que esta funcionaria como uma espécie de notas de rodapé da História. Deram a entender, de igual modo, se fizermos o exercício de justapor a nomenclatura à ilustração, que se trataria de uma história sobre um personagem pequeno e aparentemente inofensivo, menosprezado com facilidade pelos seus antagonistas, que sempre os surpreende através da astúcia e de uma força insuspeitadas. A lógica está tanto mais correcta quanto pode abarcar de igual modo a aldeia gaulesa. Como prova, basta consultar a introdução que consta de todos os álbuns: “estamos no ano 50 antes de Jesus Cristo. Toda a Gália está ocupada pelos romanos… Toda? Não! Uma aldeia habitada por irredutíveis gauleses resiste ainda e sempre ao invasor” (Goscinny & Uderzo, p. 3)[7].

Concluindo, na sua génese, Astérix é uma metáfora da luta eterna entre um David, triunfante contra todas as probabilidades, e um Golias todo-poderoso, derrotado mesmo dispondo de recursos inesgotáveis. Que o David se chame Astérix, personificação dos gauleses, e o Golias, Júlio César, símbolo máximo do Império Romano, pouco importa, pois a disputa pode ser metaforicamente adaptada e readaptada consoante as circunstâncias espácio-temporais, culturais e biográficas do leitor. É aqui que reside o brilhantismo irresistível de Astérix.



[3] https://www.tintin.com/en/essentials# [Consultado a 27-1-2022].

[7] GOSCINNY, René; UDERZO, Albert (1996) – Uma Aventura de Astérix, o Gaulês. Lisboa: Meribérica/Liber Editores.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

"Embalando a Minha Biblioteca" de Alberto Manguel


Quando, no Outono de 2000, Alberto Manguel comprou um antigo presbitério de pedra em Mondion[1], perto da cidade de Châtellerault[2], França, pensou ter finalmente encontrado o seu Paraíso. Localizado no bucólico vale do Loire, numa pequena povoação de pouco mais de uma centena de habitantes, o que chamou a atenção de Manguel foi um celeiro degradado no recinto murado do presbitério rural, espaçoso quanto baste para alojar a sua alexandrina biblioteca de 35 a 40 mil livros. Tal como o próprio explica noutra obra, A Biblioteca à Noite, o celeiro foi edificado a partir de um muro que “pertencera a um dos dois castelos que Tristan L’Hermite, ministro de Luís XI de França e famoso pela sua crueldade, construiu para os filhos por volta de 1433” (Manguel, 2016, p. 19)[3]. Foi neste lugar cheio de história que se fixou e pôde expor todos os livros que reuniu ao longo das suas atribuladas errâncias, naqueles que foram os melhores anos da sua vida.

Todavia, até os idílios mais doces têm um fim. Após quinze anos de completude, Manguel foi obrigado a abandonar a França. As razões da saída forçada nunca foram inteiramente reveladas. Podemos apenas intui-las a partir da parca informação que o autor foi deixando escapar junto da imprensa. Paralelamente ao ofício de escritor, Manguel mantém, há vários anos, uma actividade como cronista em vários jornais e publicações periódicas. Segundo uma entrevista dada ao El País[4], devido às suas opiniões contra o presidente conservador Nicolas Sarkozy (2007-2012), começou a ser alvo de uma verdadeira perseguição burocrática por parte do Estado francês. Seguindo práticas que não envergonhariam os burocratas de O Processo de Kafka, os seus congéneres gauleses passaram a exigir a Manguel documentos comprovativos da compra de cada volume da sua biblioteca. As consequências do incumprimento desta exigência são desconhecidas, mas adivinham-se nas entrelinhas da classificação de Alberto de tal procedimento como “o lado sombrio do cartesianismo”[5].

 

O presbitério e a biblioteca de Mondion


Após obter ajuda de vários amigos na catalogação da sua preciosa colecção, Manguel partiu de Mondion rumo a Nova Iorque com a biblioteca sepultada em caixas. Nessa viagem sem retorno levou consigo a experiência traumática de embalar os seus milhares de livros, que se entrevê nas linhas, “ali parado a fitar a minha biblioteca vazia, senti o peso da ausência num grau quase insuportável” (Manguel, 2018, p. 37)[6], que seria o mote para a obra homónima. Tomando à letra uns versos da Odisseia de Homero, que o próprio cita a dada altura, “os deuses fiaram a destruição para os homens para que também os vindouros tivessem tema para os seus cantos” (Manguel, 2018, p. 39), Manguel metamorfoseará a queda da Arcádia francesa num belo hino aos livros, à literatura e ao pensamento, oferecendo-o ao leitor para a sua apreciação.

A inspiração modelar para esta obra advém do ensaio de Walter Benjamin, Desembalar a Minha Biblioteca: Um Discurso Acerca da Arte de Coleccionar (1931). Neste opúsculo, Benjamin reflecte sobre os livros e, sobretudo, o carácter e a mentalidade dos seus coleccionadores, sejam os amantes de primeiras publicações de uma obra, sejam aqueles que atribuem significado particular e pessoal a determinados tomos e/ou edições específicas. Partindo do ponto de vista inverso, o embalar da sua biblioteca, Manguel expandirá estas reflexões para outros múltiplos pontos. Tal expansão deve ser vista à luz da matriz do pensamento de Manguel, que a define nos seguintes termos:

 

“sou incapaz de pensar em linha recta. Divago. Sinto que sou incapaz de partir de pontos factuais, continuar por uma rede linear de etapas lógicas até chegar a uma resolução satisfatória. Por maior que seja a minha intenção inicial, perco-me pelo caminho. Paro para admirar uma citação, ouvir uma história; deixo-me distrair por questões alheias ao meu propósito, e sou levado por uma torrente de associações. Começo a falar de uma coisa e acabo a falar de outra. Proponho a mim mesmo pensar, por exemplo, acerca de bibliotecas e a imagem de uma biblioteca ordenada conjura na minha mente desordenada associações inesperadas e inopinadas. Penso em «biblioteca» e sou imediatamente dominado pelo paradoxo de que uma biblioteca mina qualquer ordem que possua, com combinações fortuitas e fraternidades acidentais, e que se eu, ao invés de me ater ao convencional caminho alfabético, numérico ou temático que uma biblioteca estabelece para me guiar, pelo contrário me deixar tentar pelas afinidades não-electivas, o meu objecto deixa de ser a biblioteca e passa a ser o feliz caos do mundo que a biblioteca tenciona ordenar. Ariadne transformou o labirinto num caminho claro e simples para Teseu; a minha mente transforma o caminho simples num labirinto” (Manguel, 2018, p. 16).

 

Assim sendo, somos presenteados com uma verdadeira cornucópia de cogitações que polvilham a obra vindas das mais diversas fontes de inspiração e direcção. Neste sentido, e dada a sua ligação seminal a Jorge Luís Borges, Manguel disserta sobre o teor da tradução e sua validade segundo o grande autor argentino, bem como o seu credo literário e as influências da cultura e literatura judaicas na sua obra. Ademais, num ponto inicial, Alberto não resiste a traçar os indícios daquilo que chama a “ansiedade de estarmos rodeados pelas palavras e pelos rostos dos outros” (Manguel, 2018, p. 24), isto é, o fundamento e força motriz das redes sociais, a partir de indícios na obra de autores tão diversos como Petrónio; Du Fu, poeta chinês do século VIII; Al-Mutanabi, poeta árabe do século X; Petrarca; Goethe; Pushkin; ou Verne. De passagem, revela-nos a inspiração para O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson; do Dom Quixote, de Cervantes; de Madame Bovary, de Flaubert; e de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

Posteriormente, Manguel propõe, em primeiro lugar, uma desconstrução da noção, de origem medieval, de que o sofrimento possa ser a base do processo criativo; e em segundo lugar, uma reflexão sobre a incapacidade de completa captação de sentido do mundo, pois – glosando Platão – tudo o que “pomos em palavras são as sombras das sombras, e todos os livros confessam a impossibilidade de apreender inteiramente seja lá o que for que a nossa experiência agarra” (Manguel, 2018, p. 68). Associada a esta impossibilidade está o carácter mutável da leitura ao longo da nossa vida, que cambia a cada nova releitura. Alberto conclui, assim, que a literatura é uma matéria em perene interpretação e reinterpretação. Este facto não pode ser dissociado do teor primacial e definidor da linguagem, da língua no pensamento humano, pois, como relembra, “somos as línguas que falamos” (Manguel, 2018, p. 109). Ora, se a língua nos define, e molda o nosso pensamento, então os dicionários apresentam-se como biografias não só dessa mesma língua como dos seus falantes.

Por fim, Manguel embarca numa pertinente meditação sobre a permeabilidade da literatura no pensamento e na acção do Homem. Através de várias inferências, Alberto identifica a centralidade das narrativas, das histórias nas sociedades humanas como agregadoras e criadoras de sentido da vida e do mundo. Assim sendo, desenvolve o conceito do papel cívico da literatura como seu propósito intrínseco. Para Manguel, a literatura pode funcionar como a memória testemunhal da nossa sociedade – seja da ambição da imortalidade da alma, seja da recordação das atrocidades do passado, ou ainda da lembrança de que há esperança mesmo nas piores situações –, uma espécie de repositório das experiências, sensações, pensamentos, desejos e propósitos humanos, individuais e colectivos. Semelhante função não pode deixar de ser subversiva, na medida em que interpõe a reflexão como contraponto da acção, acto contrário aos desígnios de diversos governos e grandes corporações internacionais. Para este efeito, afigura-se capital o papel da biblioteca nacional de cada país como a sede de tal repositório, que permita estabelecer pontos de referência para “fazer melhores perguntas e imaginar novos modelos sociais mais justos e mais equitativos” (Manguel, 2018, p. 138).

As cogitações podem ser multiformes, contudo, todas partem de um ponto central: a vida de Manguel. Toda a ensaística do autor – veja-se Uma História da Leitura, A Biblioteca à Noite ou Uma História da Curiosidade – é intimista. No entanto, Embalando a minha Biblioteca é, provavelmente, o seu livro mais pessoal. A cada capítulo, Manguel toma sempre como ponto de referência um evento da sua vida, seja o acto condoído de empacotar os livros das estantes de Mondion, seja uma memória de infância ou dos encontros com Borges ou dos momentos deleitosos do idílio francês. Mas também, ainda, a sua longa actividade como leitor em grandes casas editoriais em Paris e Londres, e editor em Milão e no Taiti; o cargo de director da Biblioteca Nacional da Argentina; e, como não podia deixar de ser, as suas vastas leituras. Todos estes eventos servem de alimento à mente em constante ebulição de Manguel, que os transforma em pertinentes e, às vezes, desconcertantes pontos de interrogação. A dada altura, o autor afirma que é possível traçar a biografia de alguém através da sua biblioteca, o seu conteúdo, recorrência de temas e ausências. O mesmo pode ser dito da ensaística de Manguel. As suas obras de não-ficção, particularmente Embalando a Minha Biblioteca, contam a sua biografia literária, intelectual e, tantas vezes, pessoal.

Não obstante, semelhante ausência de pensamento sistemático, mesmo que suportado por referenciais de apoio, pode asseverar-se caótico e aleatório, tal como o autor não tem pejo em confidenciar, como vimos acima. Podemos, num primeiro impulso, justificar este caos com a imensidão das leituras de Alberto, perdoando-lhe porque muito leu, à imagem do perdão de Jesus Cristo a Maria Madalena porque muito amou. Todavia, num momento posterior, é possível equacionar se não é esse o carácter da literatura. Isto é, não é intrínseco à ficção narrativa um conjunto de reflexões elaboradas pelos personagens, com base nas suas vivências e experiências, aparentemente desconexas mas contendo um fio condutor interno que deve ser assimilado e interpretado pelo leitor? Talvez a chave para o entendimento do pensamento associativo de Manguel seja isso mesmo, a literatura, e o seu pensamento seja literário. No fundo, Manguel reconhece um dos princípios básicos do ser humano, a sua imutabilidade, e as suas cogitações não são mais do que o reequacionar e reformular de velhas questões que assombram o Homem pelo menos desde o início da civilização, o que não põe em causa a sua validade.

Na última página do livro, Manguel equaciona qual o futuro da sua biblioteca sepultada em caixas. Hoje, cinco anos passados, sabemos a resposta. Em plena Feira do Livro de Lisboa de 2020, o presidente incumbente do município, Fernando Medina, anunciou ter chegado a acordo com Alberto Manguel para a doação da sua biblioteca à capital portuguesa e consequente instalação da mesma no Palacete dos Marqueses de Pombal. Juntamente com a abertura desta nova biblioteca municipal virá a criação do Centro de Estudos de História da Leitura. A abertura está marcada, em princípio, para o ano de 2022, com o autor argentino como seu director[7]

 

Anúncio do estabelecimento em Lisboa da biblioteca de Manguel

 



[1] Jornal i de 11/4/2018, artigo de José Cabrita Saraiva. Disponível em: https://ionline.sapo.pt/artigo/607857/alberto-manguel-a-arte-de-sepultar-condignamente-uma-biblioteca-?seccao=Mais_i [Consultado a 14-6-2021].

[2] O Jornal Económico de 12/9/2020, artigo de António Freitas de Sousa. Disponível em:

https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/alberto-manguel-doa-os-seus-livros-deixou-de-os-amar-ou-quer-ser-livre-outra-vez-635652 [Consultado a 14-6-2021].

[3] MANGUEL, Alberto (2016) – A Biblioteca à Noite. Trad. de Rita Almeida Simões. Lisboa: Edições Tinta-da-China.

[4] El País de 8/9/2020, artigo de Felipe Sánchez. Disponível em:

https://elpais.com/cultura/2020-09-07/alberto-manguel-dona-a-lisboa-los-40000-libros-de-su-biblioteca.html [Consultado a 14-6-2021].

[5] Diário de Notícias de 7/10/2015, artigo de Ana Sousa Dias. Disponível em:

https://www.dn.pt/artes/desde_adao_e_eva_todos_somos_exilados_refugiados_nomadas_4819921.html [Consultado a 14-6-2021].

[6] MANGUEL, Alberto (2018) – Embalando a Minha Biblioteca. Trad. de Rita Almeida Simões. Lisboa: Edições Tinta-da-China.

[7] Público de 5/9/2020, artigo de Luís Miguel Queirós. Disponível em:

https://www.publico.pt/2020/09/05/culturaipsilon/noticia/alberto-manguel-vai-doar-biblioteca-camara-lisboa-1930434 [Consultado a 14-6-2021].