sábado, 13 de outubro de 2018

"A Metamorfose" de Franz Kafka

A Metamorfose constitui a prova de como um livro tão pequeno pode causar um impacto tão grande no panorama literário. Em pouco mais de noventa páginas, Kafka antecipou aquilo que seriam as tendências literárias das seguintes décadas.

O enredo da novela é relativamente simples e amplamente conhecido nos seus contornos gerais. Gregor Samsa, um caixeiro-viajante de uma firma local, acorda uma bela manhã transformado num insecto monstruoso, que Nabokov, com formação em entomologia, classificou como um besouro. Consciente da sua transformação, mantendo as memórias da sua vida anterior, e perdendo a capacidade da fala escassos minutos após acordar metamorfoseado, Gregor é encarado com horror pela família, constituída pelos pais e uma irmã mais nova, incapazes de processar o fatídico evento. Impossibilitado de comunicar com o mundo exterior, Samsa vê a sua mente aprisionada progressivamente deteriorar-se numa confusão absurda de pensamentos e resoluções obsessivas e incapazes de se consubstanciar, misturada com uma galopante desumanização, fruto das suas pulsões de insecto. A família que ele, sozinho, reergueu da bancarrota da loja paterna e sustentou durante cinco anos, vê-se forçada a trabalhar para sobreviver – o pai como paquete num banco, a mãe como costureira e a irmã como empregada de comércio – enquanto acarreta com o fardo que é cuidar de si. À medida que a vida familiar se recompõe no meio da necessidade, o pai reergue-se da reforma antecipada a que estava votado, a mãe melhora dos ataques de asma enquanto vai trabalhando e assumindo as funções da empregada doméstica que tiveram que despedir, e a irmã cresce viçosa, com o gosto pelo violino e o novo emprego, Gregor definha a olhos vistos, é cada vez mais insecto e cada vez menos humano. Vítima de incompreensão, abusos e violência, acaba por morrer da infecção de uma ferida provocada pelo pai, que tanto apoiara antes, ignorado por todos.

Morte de Gregor Samsa, in Famous Fantastic Mysteries (1953)

A concepção desta novela remonta a 1912 mas seria preciso esperar até 1915 para a ver publicada. Não creio que tenha sido por mero acaso, salvo toda e qualquer decisão pessoal do autor, a verdade é que o flagelo da Primeira Guerra Mundial tornou possível a audiência a semelhante obra que narra o desespero e a angústia humanas. A Metamorfose intuiu aquilo que seria o prolífico movimento literário entre as guerras mundiais, o absurdismo, que pôs em causa as certezas europeias do século XIX, numa dúvida constante das realizações humanas, o sentido do ridículo da vida e o valor dessa mesma vida numa sociedade capaz de ceifar conscientemente dezenas de milhões em prol, na primeira Grande Guerra, de interesses nacionais e dinásticos comezinhos, e na segunda, da vingança e da afirmação de poder fascista das nações derrotadas na anterior.

Franz Kafka (1883-1924)

Não posso deixar de considerar que há outro grande vector histórico manifestado em Kafka. As inquietações e sofrimentos de Gregor Samsa são filhas da ruptura psicológica provocada pela Revolução Industrial no modo de vida das camadas mais pobres da sociedade. A exploração dos trabalhadores com salários miseráveis, sem direitos ou protecção laboral e condições de trabalho deploráveis num ambiente fabril incessante, muitas das vezes de doze a dezasseis horas diárias, fidedignamente descritas por Dickens em Oliver Twist e David Copperfield, que viveu esta realidade de perto na sua juventude, romperam com o acesso ao descanso e às horas de ócio vividas por estas camadas no mundo pré-industrial. Desta forma, a metamorfose de Samsa pode ser vista como uma reacção exacerbada à realidade laboral que o oprimia todos os dias da sua vida nos últimos cinco anos.

Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927)

São inevitáveis as comparações a Akutagawa, escritor japonês contemporâneo de Kafka. A Metamorfose (1915) tem o seu equivalente japonês em Patas de Cavalo (1925), em que Oshino Hanzaburo, empregado de escritório de uma multinacional nipónica, morre por engano e é devolvido à vida, três dias após o óbito, com as patas de um cavalo, dado as suas pernas terem gangrenado enquanto esperava no purgatório e só lá haver disponível um equídeo.