A lírica comporta uma liberdade expressiva de
sentimentos, emoções, estados de espírito e devaneios que a tornam
particularmente difícil de glosar quando se trata, não apenas de um poema, mas
de um livro de poesia. A origem dessa liberdade remonta, estou certo, ao próprio
nascimento da lírica, poesia composta para ser declamada ao som ritmado da
lira, na Grécia antiga (consultar a crítica dos Sonetos Completos, de Antero de Quental, para um comentário mais aprofundado).
Em nenhum outro poeta português do século XIX se sente mais a fruição dessa
liberdade, delicadamente musicada aos nossos ouvidos, do que em António Nobre.
A atestá-lo está a opinião de personalidades tão díspares como Sampaio Bruno,
que elogia o seu “fulgor divino” (Despedidas, p.VI); e Fernando Pessoa,
que considera Nobre como o “primeiro a pôr em europeu este sentimento português
das almas e das coisas”, isto é, da corporização dos espíritos e da humanização
dos seres vivos e dos seres inanimados, partindo dele, assim, “todas as
palavras com sentido lusitano que de então para cá têm sido
pronunciadas”
(«Para a Memória de António Nobre» in Textos de Crítica e de
Intervenção, p.115).
Começando a escrever aos catorze anos, Nobre
foi publicando poemas avulsos em jornais e revistas literárias. De longa data
preparava já um livro que reunisse a sua poesia, sucessivamente adiado por
imprevistos pessoais e por pruridos da sua estética ainda em metamorfose. O Só
será simultaneamente o culminar desse projecto e a única obra publicada em vida.
Lançado na cidade de Paris, em 1892, a sua edição foi levada a cabo por Léon
Vanier, o editor dos poetas do movimento simbolista: Paul Verlaine, Arthur
Rimbaud e Stéphane Mallarmé. Não é por acaso. Nobre tinha rumado a França, em
1890, para frequentar o curso de Direito na Sorbonne. Habitando no Quartier
Latin (Bairro Latino), próximo da universidade, trava conhecimento com os
protagonistas deste novo movimento literário, que tanto o influenciará. De
Verlaine, absorve a imagética simbólica da fatalidade, das forças inconscientes
e dos fenómenos irracionais, como o sonho e o delírio tísico, deixando de lado
a obscenidade. Bem assim, apreende-lhe, tal como a Mallarmé, a nova estética da
musicalidade e do ritmo do canto lírico.
Paralelamente, persistem em Nobre
reminiscências do satanismo poético de Baudelaire, filtradas através de Antero
de Quental, poeta acerca do qual foi o primeiro a prestar culto, “quero/mas é
ir à Ilha orar sobre a cova do Antero” (Só, p.167). As influências
anterianas não se findam aqui. Câmara Reis aponta o soneto «A Alberto Teles», particularmente
o verso “Só! – Ao ermita sozinho na montanha” (Sonetos Completos,
p.106), como a inspiração para o título da obra de António Nobre.
O Só contém seis grandes composições poéticas, nomeadamente «António», «Lusitânia no Bairro Latino», «Entre Douro e Minho», «Lua-Cheia», «Lua Quarto-Minguante», «Males de Anto» (entenda-se, António), bem como duas colecções, uma de sonetos, outra de elegias. Toda a obra denota uma vincada tendência para a exploração de temas autobiográficos, associando as suas atribulações de espírito aos males de Portugal – então a atravessar a crise final da monarquia proveniente do Ultimato britânico de 1890 e da bancarrota de 1892 – Nobre afirma “queixa-se o meu editor e todos que falo só de mim. Mas não sou eu o intérprete das dores do meu país?” (Só, p.55). Deste modo, são temas recorrentes os desgostos que sofreu em Coimbra, com as praxes académicas a importuna-lo particularmente devido ao aspecto byroniano da sua indumentária, e as reprovações que o levaram à emigração para Paris, de modo a concluir a licenciatura em Direito. O sentimento de exclusão, que o faz entender a emigração como um exílio, foi apenas agravado pelas dificuldades económicas por que passou em França, acabando por desenvolver um desânimo pungente. Paradoxalmente, este exílio reaproxima-o do país. A distância leva-o a amar a pátria, dando origem a um saudosismo muito característico, apologético do Portugal provinciano, das festas e romarias e da sabedoria popular. Fundado num redescobrir do Garrett das Viagens na Minha Terra, nome que dá a um dos poemas do Só, este saudosismo lírico será a grande inspiração de Teixeira de Pascoaes.
Dá-se em António Nobre o consubstanciar de uma
máxima de Oscar Wilde, “a literatura antecipa-se sempre à vida” (Pensamentos,
p.133). Em conjunto com os contratempos vividos, Nobre versa sobre os desgostos
amorosos de que se imagina alvo, concebendo de si próprio uma imagem de eterno
menino e moço, ao qual estão vedados o matrimónio, a felicidade conjugal e a completude
da sua personalidade. Devido a uma certa sensibilidade latente, a sua poesia
está atenta às figuras mais desgraçadas da sociedade, os cegos, os estropiados
e os tísicos, com quem se identifica. Estabelece, assim, toda uma genealogia de
presságios, partindo do berço, que intui sob um signo funesto, até à sua
condição de excluído, do país, da sociedade, da vida. A realidade viria a
confirmar a lírica. Em 1895, António Nobre descobre que sofre de tuberculose,
sem dúvida devido à penúria experienciada em Paris, a tísica que tanto glosou
no Só. Como consequência da doença, que, na época, representava uma
sentença de morte, dá-se a ruptura do noivado que mantinha com Margarida de
Lucena. Acaba por falecer em 1900, tinha apenas trinta e dois anos.
Referências
NOBRE, António (1902) – Despedidas:
1895-1899. Prefácio de José Pereira de Sampaio (Bruno). Porto: s.n. Disponível
online em: https://www.gutenberg.org/files/27535/27535-h/27535-h.htm
[Consultado a 27-03-2019].
PESSOA, Fernando (1980) – Textos de Crítica
e de Intervenção. Lisboa: Ática.
NOBRE, António (1989) – Só. Lisboa:
Ulisseia. (Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, n.º 29).
QUENTAL, Antero (2002) – Sonetos Completos.
Lisboa: Ulisseia. (Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, n.º 48).
WILDE, Oscar (2011) – Pensamentos.
Lisboa: Relógio D’Água Editores.