quarta-feira, 23 de junho de 2021

"Embalando a Minha Biblioteca" de Alberto Manguel


Quando, no Outono de 2000, Alberto Manguel comprou um antigo presbitério de pedra em Mondion[1], perto da cidade de Châtellerault[2], França, pensou ter finalmente encontrado o seu Paraíso. Localizado no bucólico vale do Loire, numa pequena povoação de pouco mais de uma centena de habitantes, o que chamou a atenção de Manguel foi um celeiro degradado no recinto murado do presbitério rural, espaçoso quanto baste para alojar a sua alexandrina biblioteca de 35 a 40 mil livros. Tal como o próprio explica noutra obra, A Biblioteca à Noite, o celeiro foi edificado a partir de um muro que “pertencera a um dos dois castelos que Tristan L’Hermite, ministro de Luís XI de França e famoso pela sua crueldade, construiu para os filhos por volta de 1433” (Manguel, 2016, p. 19)[3]. Foi neste lugar cheio de história que se fixou e pôde expor todos os livros que reuniu ao longo das suas atribuladas errâncias, naqueles que foram os melhores anos da sua vida.

Todavia, até os idílios mais doces têm um fim. Após quinze anos de completude, Manguel foi obrigado a abandonar a França. As razões da saída forçada nunca foram inteiramente reveladas. Podemos apenas intui-las a partir da parca informação que o autor foi deixando escapar junto da imprensa. Paralelamente ao ofício de escritor, Manguel mantém, há vários anos, uma actividade como cronista em vários jornais e publicações periódicas. Segundo uma entrevista dada ao El País[4], devido às suas opiniões contra o presidente conservador Nicolas Sarkozy (2007-2012), começou a ser alvo de uma verdadeira perseguição burocrática por parte do Estado francês. Seguindo práticas que não envergonhariam os burocratas de O Processo de Kafka, os seus congéneres gauleses passaram a exigir a Manguel documentos comprovativos da compra de cada volume da sua biblioteca. As consequências do incumprimento desta exigência são desconhecidas, mas adivinham-se nas entrelinhas da classificação de Alberto de tal procedimento como “o lado sombrio do cartesianismo”[5].

 

O presbitério e a biblioteca de Mondion


Após obter ajuda de vários amigos na catalogação da sua preciosa colecção, Manguel partiu de Mondion rumo a Nova Iorque com a biblioteca sepultada em caixas. Nessa viagem sem retorno levou consigo a experiência traumática de embalar os seus milhares de livros, que se entrevê nas linhas, “ali parado a fitar a minha biblioteca vazia, senti o peso da ausência num grau quase insuportável” (Manguel, 2018, p. 37)[6], que seria o mote para a obra homónima. Tomando à letra uns versos da Odisseia de Homero, que o próprio cita a dada altura, “os deuses fiaram a destruição para os homens para que também os vindouros tivessem tema para os seus cantos” (Manguel, 2018, p. 39), Manguel metamorfoseará a queda da Arcádia francesa num belo hino aos livros, à literatura e ao pensamento, oferecendo-o ao leitor para a sua apreciação.

A inspiração modelar para esta obra advém do ensaio de Walter Benjamin, Desembalar a Minha Biblioteca: Um Discurso Acerca da Arte de Coleccionar (1931). Neste opúsculo, Benjamin reflecte sobre os livros e, sobretudo, o carácter e a mentalidade dos seus coleccionadores, sejam os amantes de primeiras publicações de uma obra, sejam aqueles que atribuem significado particular e pessoal a determinados tomos e/ou edições específicas. Partindo do ponto de vista inverso, o embalar da sua biblioteca, Manguel expandirá estas reflexões para outros múltiplos pontos. Tal expansão deve ser vista à luz da matriz do pensamento de Manguel, que a define nos seguintes termos:

 

“sou incapaz de pensar em linha recta. Divago. Sinto que sou incapaz de partir de pontos factuais, continuar por uma rede linear de etapas lógicas até chegar a uma resolução satisfatória. Por maior que seja a minha intenção inicial, perco-me pelo caminho. Paro para admirar uma citação, ouvir uma história; deixo-me distrair por questões alheias ao meu propósito, e sou levado por uma torrente de associações. Começo a falar de uma coisa e acabo a falar de outra. Proponho a mim mesmo pensar, por exemplo, acerca de bibliotecas e a imagem de uma biblioteca ordenada conjura na minha mente desordenada associações inesperadas e inopinadas. Penso em «biblioteca» e sou imediatamente dominado pelo paradoxo de que uma biblioteca mina qualquer ordem que possua, com combinações fortuitas e fraternidades acidentais, e que se eu, ao invés de me ater ao convencional caminho alfabético, numérico ou temático que uma biblioteca estabelece para me guiar, pelo contrário me deixar tentar pelas afinidades não-electivas, o meu objecto deixa de ser a biblioteca e passa a ser o feliz caos do mundo que a biblioteca tenciona ordenar. Ariadne transformou o labirinto num caminho claro e simples para Teseu; a minha mente transforma o caminho simples num labirinto” (Manguel, 2018, p. 16).

 

Assim sendo, somos presenteados com uma verdadeira cornucópia de cogitações que polvilham a obra vindas das mais diversas fontes de inspiração e direcção. Neste sentido, e dada a sua ligação seminal a Jorge Luís Borges, Manguel disserta sobre o teor da tradução e sua validade segundo o grande autor argentino, bem como o seu credo literário e as influências da cultura e literatura judaicas na sua obra. Ademais, num ponto inicial, Alberto não resiste a traçar os indícios daquilo que chama a “ansiedade de estarmos rodeados pelas palavras e pelos rostos dos outros” (Manguel, 2018, p. 24), isto é, o fundamento e força motriz das redes sociais, a partir de indícios na obra de autores tão diversos como Petrónio; Du Fu, poeta chinês do século VIII; Al-Mutanabi, poeta árabe do século X; Petrarca; Goethe; Pushkin; ou Verne. De passagem, revela-nos a inspiração para O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson; do Dom Quixote, de Cervantes; de Madame Bovary, de Flaubert; e de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

Posteriormente, Manguel propõe, em primeiro lugar, uma desconstrução da noção, de origem medieval, de que o sofrimento possa ser a base do processo criativo; e em segundo lugar, uma reflexão sobre a incapacidade de completa captação de sentido do mundo, pois – glosando Platão – tudo o que “pomos em palavras são as sombras das sombras, e todos os livros confessam a impossibilidade de apreender inteiramente seja lá o que for que a nossa experiência agarra” (Manguel, 2018, p. 68). Associada a esta impossibilidade está o carácter mutável da leitura ao longo da nossa vida, que cambia a cada nova releitura. Alberto conclui, assim, que a literatura é uma matéria em perene interpretação e reinterpretação. Este facto não pode ser dissociado do teor primacial e definidor da linguagem, da língua no pensamento humano, pois, como relembra, “somos as línguas que falamos” (Manguel, 2018, p. 109). Ora, se a língua nos define, e molda o nosso pensamento, então os dicionários apresentam-se como biografias não só dessa mesma língua como dos seus falantes.

Por fim, Manguel embarca numa pertinente meditação sobre a permeabilidade da literatura no pensamento e na acção do Homem. Através de várias inferências, Alberto identifica a centralidade das narrativas, das histórias nas sociedades humanas como agregadoras e criadoras de sentido da vida e do mundo. Assim sendo, desenvolve o conceito do papel cívico da literatura como seu propósito intrínseco. Para Manguel, a literatura pode funcionar como a memória testemunhal da nossa sociedade – seja da ambição da imortalidade da alma, seja da recordação das atrocidades do passado, ou ainda da lembrança de que há esperança mesmo nas piores situações –, uma espécie de repositório das experiências, sensações, pensamentos, desejos e propósitos humanos, individuais e colectivos. Semelhante função não pode deixar de ser subversiva, na medida em que interpõe a reflexão como contraponto da acção, acto contrário aos desígnios de diversos governos e grandes corporações internacionais. Para este efeito, afigura-se capital o papel da biblioteca nacional de cada país como a sede de tal repositório, que permita estabelecer pontos de referência para “fazer melhores perguntas e imaginar novos modelos sociais mais justos e mais equitativos” (Manguel, 2018, p. 138).

As cogitações podem ser multiformes, contudo, todas partem de um ponto central: a vida de Manguel. Toda a ensaística do autor – veja-se Uma História da Leitura, A Biblioteca à Noite ou Uma História da Curiosidade – é intimista. No entanto, Embalando a minha Biblioteca é, provavelmente, o seu livro mais pessoal. A cada capítulo, Manguel toma sempre como ponto de referência um evento da sua vida, seja o acto condoído de empacotar os livros das estantes de Mondion, seja uma memória de infância ou dos encontros com Borges ou dos momentos deleitosos do idílio francês. Mas também, ainda, a sua longa actividade como leitor em grandes casas editoriais em Paris e Londres, e editor em Milão e no Taiti; o cargo de director da Biblioteca Nacional da Argentina; e, como não podia deixar de ser, as suas vastas leituras. Todos estes eventos servem de alimento à mente em constante ebulição de Manguel, que os transforma em pertinentes e, às vezes, desconcertantes pontos de interrogação. A dada altura, o autor afirma que é possível traçar a biografia de alguém através da sua biblioteca, o seu conteúdo, recorrência de temas e ausências. O mesmo pode ser dito da ensaística de Manguel. As suas obras de não-ficção, particularmente Embalando a Minha Biblioteca, contam a sua biografia literária, intelectual e, tantas vezes, pessoal.

Não obstante, semelhante ausência de pensamento sistemático, mesmo que suportado por referenciais de apoio, pode asseverar-se caótico e aleatório, tal como o autor não tem pejo em confidenciar, como vimos acima. Podemos, num primeiro impulso, justificar este caos com a imensidão das leituras de Alberto, perdoando-lhe porque muito leu, à imagem do perdão de Jesus Cristo a Maria Madalena porque muito amou. Todavia, num momento posterior, é possível equacionar se não é esse o carácter da literatura. Isto é, não é intrínseco à ficção narrativa um conjunto de reflexões elaboradas pelos personagens, com base nas suas vivências e experiências, aparentemente desconexas mas contendo um fio condutor interno que deve ser assimilado e interpretado pelo leitor? Talvez a chave para o entendimento do pensamento associativo de Manguel seja isso mesmo, a literatura, e o seu pensamento seja literário. No fundo, Manguel reconhece um dos princípios básicos do ser humano, a sua imutabilidade, e as suas cogitações não são mais do que o reequacionar e reformular de velhas questões que assombram o Homem pelo menos desde o início da civilização, o que não põe em causa a sua validade.

Na última página do livro, Manguel equaciona qual o futuro da sua biblioteca sepultada em caixas. Hoje, cinco anos passados, sabemos a resposta. Em plena Feira do Livro de Lisboa de 2020, o presidente incumbente do município, Fernando Medina, anunciou ter chegado a acordo com Alberto Manguel para a doação da sua biblioteca à capital portuguesa e consequente instalação da mesma no Palacete dos Marqueses de Pombal. Juntamente com a abertura desta nova biblioteca municipal virá a criação do Centro de Estudos de História da Leitura. A abertura está marcada, em princípio, para o ano de 2022, com o autor argentino como seu director[7]

 

Anúncio do estabelecimento em Lisboa da biblioteca de Manguel

 



[1] Jornal i de 11/4/2018, artigo de José Cabrita Saraiva. Disponível em: https://ionline.sapo.pt/artigo/607857/alberto-manguel-a-arte-de-sepultar-condignamente-uma-biblioteca-?seccao=Mais_i [Consultado a 14-6-2021].

[2] O Jornal Económico de 12/9/2020, artigo de António Freitas de Sousa. Disponível em:

https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/alberto-manguel-doa-os-seus-livros-deixou-de-os-amar-ou-quer-ser-livre-outra-vez-635652 [Consultado a 14-6-2021].

[3] MANGUEL, Alberto (2016) – A Biblioteca à Noite. Trad. de Rita Almeida Simões. Lisboa: Edições Tinta-da-China.

[4] El País de 8/9/2020, artigo de Felipe Sánchez. Disponível em:

https://elpais.com/cultura/2020-09-07/alberto-manguel-dona-a-lisboa-los-40000-libros-de-su-biblioteca.html [Consultado a 14-6-2021].

[5] Diário de Notícias de 7/10/2015, artigo de Ana Sousa Dias. Disponível em:

https://www.dn.pt/artes/desde_adao_e_eva_todos_somos_exilados_refugiados_nomadas_4819921.html [Consultado a 14-6-2021].

[6] MANGUEL, Alberto (2018) – Embalando a Minha Biblioteca. Trad. de Rita Almeida Simões. Lisboa: Edições Tinta-da-China.

[7] Público de 5/9/2020, artigo de Luís Miguel Queirós. Disponível em:

https://www.publico.pt/2020/09/05/culturaipsilon/noticia/alberto-manguel-vai-doar-biblioteca-camara-lisboa-1930434 [Consultado a 14-6-2021].

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Ciclo dos Corsários das Antilhas, de Emilio Salgari

 

A meio da publicação da série de romances de aventura que lhe traria a fama, o Ciclo dos Piratas da Malásia – cuja figura central será o inesquecível Sandokan – que inicia em 1895, Emilio Salgari enceta o lançamento de uma nova série dedicada aos piratas de outras latitudes, o Ciclo dos Corsários das Antilhas (1898-1908) que, juntamente com o anterior, consolidará a sua reputação como pai da literatura popular contemporânea.

 

O Corsário, a Bela e o Monstro

 

A peça central deste ciclo, à volta da qual tudo gira, é o Corsário Negro, que Salgari não resistiu em tornar seu homónimo, Emilio di Roccabruna de Roccanera, Senhor de Valpenta e Ventimiglia, possessões nobiliárquicas do Ducado da Sabóia (actual região italiana da Ligúria). A sua história e motivações são complexas. Em plena guerra franco-espanhola, nunca devidamente mencionada[1], o Senhor de Ventimiglia original, o irmão mais velho de Emilio, na sua qualidade de nobre do Ducado da Sabóia (na altura aliada recorrente de França), e chefe militar de forças franco-saboianas, é vítima de uma vil traição. Um duque flamengo, Wan Guld, originário das terras do rei de França, é aliciado por Espanha e trai a companhia franco-saboiana de que fazia parte, então estacionada numa importante praça-forte, matando o Senhor de Ventimiglia para encobrir o seu acto pérfido. Recompensado com o governo da cidade de Maracaibo, uma das mais ricas da colónia espanhola da Venezuela, Wan Guld parte para a América e é seguido de perto pelo novo Senhor de Ventimiglia, o nosso Emilio Roccanera. Juntamente com os seus irmãos mais novos, que assumem os nomes de Corsário Vermelho e Corsário Verde, Emilio, ele próprio transfigurado em Corsário Negro, jurará vingança eterna a Wan Guld e uma perseguição sem quartel.

 

Kabir Bedi como Corsário Negro no filme homónimo de 1976


No ponto inicial da narrativa de O Corsário Negro (1898), vários anos se passaram deste o princípio da vendeta jurada pelos três irmãos. Os Corsários Vermelho e Verde foram, entretanto, liquidados pelo sanguinário Wan Guld. De luto não já por um, mas pelos três irmãos, e acossado pelas forças espanholas, o Corsário Negro tenta uma acção desesperada, o assalto à cidade de Maracaibo. O primeiro capítulo abre em grande plano com o início deste assalto.

Apanhado de surpresa, Wan Guld perde o controlo da cidade e é obrigado a fugir. Segue-se uma longa fuga pelas florestas luxuriantes da Venezuela, com o Corsário Negro e os seus três homens de confiança, os amigos inseparáveis Carmaux e Wan Stiller, e o escravo foragido tornado pirata, Moko, na peugada do pérfido governador. Calor tórrido, doenças tropicais, fome, ataques de jaguares e de tribos indígenas hostis em nada aplacam a sede de vingança do Corsário.

Ainda assim, o Duque escapa uma vez mais. Enquanto o Corsário Negro reorganiza forças e firma alianças com os flibusteiros da Tortuga[2], os seus correligionários capturam um navio espanhol que transportava uma mulher nobre de alta estirpe, a misteriosa Honorata. Presente na Tortuga aquando da chegada de Honorata, o Corsário trava conhecimento com ela e cedo se apaixona arrebatadamente, indo ao ponto de pagar pessoalmente o resgate que os flibusteiros esperavam receber com o seu apresamento. Não há, contudo, um momento a perder, pois as forças flibusteiras estão já reunidas, prontas para o ataque ao novo reduto de Wan Guld, a cidade de Gibraltar (Venezuela). A sorte favorece os audazes, e o Corsário e os seus aliados apoderam-se da colónia espanhola, mas o Duque escapa-se sorrateiramente à terrível vingança que pesa sobre a sua cabeça. Ao regressar ao seu navio, o Relâmpago, o Corsário Negro sofre um ainda mais duro revés, pois toma conhecimento, pela mão de um prisioneiro hispânico, que a bela e misteriosa Honorata é a filha e herdeira de Wan Guld. Dividido entre o amor e a vingança jurada aos irmãos, é esta última que ganha preponderância no seu íntimo. O romance termina com a bela Honorata Wan Guld à deriva num pequeno bote, para onde tinha sido descida por ordem do Corsário, enquanto se aproxima uma tempestade ao largo.

 

 

Mel Ferrer como Wan Guld no filme Il Corsaro Negro (1976)


O segundo romance do ciclo, A Rainha das Caraíbas (1901), retoma a narrativa no ponto precedente. Consumido pelos remorsos de poder ter, séria e fatalmente, levado à morte da sua amada, o Senhor de Ventimiglia juntará um novo propósito à sua vida para além da vingança dos irmãos, encontrar Honorata. Auxiliado pelos companheiros da sua confiança, Carmaux, Wan Stiller e Moko, e confiando na ajuda do seu lugar-tenente, Henry Morgan (personagem histórico, um corsário britânico), Emilio Roccanera procura o fugidio Duque através de toda a costa da América Central. Em cada paragem tenta obter também informações quanto ao destino e eventual paradeiro da bela Honorata, acerca dos quais pouco se sabe, a não ser boatos de veracidade dúbia.

Oscilando entre o desespero pela incapacidade de encontrar a amada, e a sede de vingança cada vez maior contra Wan Guld, o Corsário Negro decide encerrar de uma vez por todas a pendência que está ao seu alcance, a vendeta. Nesse intento contará com a ajuda de novos aliados, os corsários Nicholas van Horn, Michel Grammont e Laurens de Graaf (personagens históricas, corsários de origem holandesa, francesa e neerlandesa, respectivamente). E para tal não olhará a meios, expondo-se a ataques temerários a cidades e fortalezas muito mais bem guarnecidas do que as forças que detém, a caminhadas desenfreadas pelas selvas tropicais americanas, a assaltos a propriedades de Wan Guld e, por fim, até à escalada e infiltração num forte onde o Duque poderia estar alojado, que termina com a captura do Corsário.

Salvo no último minuto pelo fiel Morgan quando estava prestes a ser entregue nas mãos do sanguinário Duque, o Corsário depressa se refaz e aproveita a oportunidade para ajustar contas com o seu mortal inimigo. Após uma batalha naval feroz entre as forças oponentes, e posterior abordagem do navio espanhol pelos flibusteiros, o Duque, vendo-se perdido, faz explodir o seu barco depois de proferir a terrível sentença, “Que morram todos!” (Salgari, 1997, p. 342)[3].

 

Honorata (Carole André) e o Corsário Negro

 

Só o Corsário e os seus três companheiros mais próximos sobrevivem, mas são afastados de Morgan e do Relâmpago devido à tempestade que se formara durante a batalha, indo naufragar nas costas da Flórida. Aí são aprisionados por uma tribo de indígenas antropófagos, que os pretende matar em sacrifício aos seus deuses e consumi-los ritualmente. No entanto, a sorte está do seu lado pois são indultados pela Rainha dos Antropófagos. E quem é essa rainha? Quem mais senão Honorata Wan Guld, naufragada naquelas terras meses antes e considerada pelos índios como um ser divino? O reencontro entre os dois amados é tocante. Honorata perdoa a intervenção do Corsário na morte de seu pai, e ambos decidem casar e partir para a Europa, para as possessões familiares do Senhor de Ventimiglia, que abonadona definitivamente o corso.

 

Os Filhos e Outros Descendentes

 

O sucesso editorial destes dois romances levou à continuação do ciclo. Seguiram-se, assim, as obras dedicadas aos filhos dos corsários. Em Iolanda, a Filha do Corsário Negro (1905), somos apresentados a Iolanda, filha de Emilio e Honorata, entretanto falecidos, numa batalha em Itália e durante o parto, respectivamente. Dezassete anos depois, uma Roccanera retorna à América Central, desta feita para reivindicar a herança das propriedades, e fortuna de Wan Guld, devidas a Iolanda por direito sucessório materno. Para que tal seja possível, Iolanda Roccanera terá que enfrentar outro pretendente à herança, o filho ilegítimo do Duque, o Conde de Medina e Torres. Toda a acção do romance se resume aos intentos opostos levados a cabo por cada um dos dois contendores. Para este efeito, Iolanda disporá da ajuda de Morgan, que entretanto assumiu a posição do Corsário Negro como líder dos flibusteiros, e dos companheiros do seu pai. No final, o partido de Iolanda sairá vencedor e esta casará com Morgan, que dela se enamora perdidamente, e que é nomeado governador da Jamaica pelas autoridades inglesas. Quanto a Carmaux e Wan Stiller, este é o momento da sua reforma como flibusteiros.

 

May Britt como Iolanda no filme Jolanda, la figlia del Corsaro Negro (1953)

 

O Filho do Corsário Vermelho (1908) desloca o foco para o sobrinho do Corsário Negro, Enrico de Roccanera, novo Senhor de Ventimiglia. Não é já por vingança ou motivos de herança que mais um Roccanera pisa terras americanas, mas sim pela procura de uma familiar perdida. Ao saber que o seu pai, o Corsário Vermelho, teria contraído um primeiro matrimónio com uma princesa índia – descendente directa do Grande Cacique do Darién – de quem teria tido uma filha, Inês, Enrico não se furtará a meios para a encontrar. Com a ajuda de Mendoza, antigo homem de confiança do Corsário Vermelho, e de um gascão, que se alista de moto próprio na flibustaria para alcançar glória e dinheiro, Dom Barrejo (que substituirão a dupla cómica Carmaux/Wan Stiller), Enrico Roccanera será forçado a percorrer milhares de quilómetros e ultrapassar inúmeras peripécias para resgatar a irmã Inês das mãos do homem que a criou e a pretende manter refém, o Marquês de Montelimar, amigo próximo do falecido Duque.

Os Últimos Flibusteiros (1908) constituem uma jogada comercial de Salgari, ou dos seus editores, para lucrarem com o sucesso dos anteriores volumes, prolongando uma vez mais a narrativa, desta feita para um derradeiro golpe final. Quando Inês de Roccanera, filha do Corsário Vermelho e irmã de Enrico, Senhor de Ventimiglia, retorna ao Panamá para receber a herança do avô, o Grande Cacique do Darién (detentor de uma fortuna fabulosa), é raptada pelo Marquês de Montelimar. Revelam-se, finalmente, as verdadeiras intenções do seu antigo protector: apoderar-se do ouro indígena. Caberá a Mendoza e a Dom Barrejo resgatar a Senhora Inês, que com eles partilhará a herança, como gesto de reconhecimento, levando à reforma destes últimos flibusteiros dignos de nota.

 

Análise e Comentários

 

Umberto Eco chamava a Salgari o “Verne italiano”[4], e tinha razão. Aquilo que Verne foi, sobretudo, para a ficção científica, Salgari é-o para a literatura popular dedicada às aventuras e façanhas heróicas. Tal como Verne, Salgari é autor de uma vasta obra, que conta com mais de duzentos romances e contos. À imagem do grande autor francês, há em Salgari o vigor característico dos escritores oitocentistas, o seu amor pela erudição enciclopédica e os dados factuais, com os quais preenche, como na ficção verniana, os entrementes dos seus livros.

 

Emilio Salgari (1862-1911)

 

Todavia, as semelhanças com Júlio Verne terminam aqui. O estilo de escrita de Emilio Salgari é ainda mais torrencial que o do autor francês, sacrificando, pontualmente, o rigor em detrimento de uma imagética muito vívida e verdadeiramente cinematográfica. Senhor de uma pujante imaginação, Salgari tem dificuldade em constranger a sua criação aos limites de um só volume, preferindo a liberdade que longos ciclos, como o do Corsário Negro ou Sandokan, lhe permitem. As suas obras começam sempre in media res, fulminando os leitores, que caem directamente no pino da acção, com o cheiro a pólvora, a maresia e a intrepidez humana. É como se Salgari estivesse sempre a um passo de se lançar numa nova demanda.

No entanto, semelhante estilo cataclísmico tem as suas consequências. O constante foco na acção prejudica o desenvolvimento interno das personagens. Conhecemos ao pormenor os seus actos, mas não os seus pensamentos. Aquilo que a obra ganha em ritmo e intensidade, perde em densidade e substância. Ademais, à medida que os volumes se sucedem, vão-se acumulando lapsos e incorrecções, resultado natural do seu estilo, que carecia de uma revisão antes da publicação. Tomemos como exemplo as incongruências na linha temporal do Ciclo dos Corsários das Antilhas. A acção do primeiro e do segundo volumes decorre algures entre 1680 e 1683, não sendo possível precisar, pois são apontadas em momentos diferentes como verídicas. Por sua vez, o terceiro volume, que ocorre cerca de dezassete anos depois dos anteriores, termina a 18 de Janeiro de 1671. Já no quarto volume, cuja acção é posterior à do terceiro em alguns anos, é-nos apontado o ano de 1685 como o período temporal do romance. Finalmente, o quinto volume terá de ser necessariamente posterior a 17 de Abril de 1687, última data apontada no tomo precedente. Como podemos concluir, conhecemos a sucessão de eventos, mas a sua datação não lhe é condizente, asseverando-se, inclusive, arbitrária e ilógica.

Um olhar mais apurado para a vida de Salgari talvez ajude a contextualizar o seu estilo e as consequentes incongruências. Mesmo tendo em conta a liberdade criativa que, sem dúvida, exerceu, a imensidão da sua produção tem uma explicação: uma questão de sobrevivência. Salgari teve uma vida atribulada, sendo perseguido por dívidas, tendo que lidar com a frágil saúde mental da esposa, Ida Peruzzi, que se foi deteriorando, e estando responsável pela subsistência de uma família numerosa de quatro filhos. Para se sustentar, e cumprir com os seus encargos, escrevia freneticamente, à semelhança de Camilo Castelo Branco. Se juntarmos a isto as precárias condições contratuais dos escritores no século XIX, pagos à página e por romance, e a débil legislação da propriedade intelectual, que favorecia os editores em detrimento dos autores, compreendemos a urgência em escrever cumulativamente, que de modo natural se prestava a erros e a lapsos. Eventualmente, a pressão sobre Salgari para cumprir contractos abusivos e estar à altura das suas responsabilidades, tornou-se tão grande que o levou ao suicídio, a 25 de Abril de 1911, apenas três anos depois da publicação do último romance do Ciclo dos Corsários.

 

Ida Peruzzi, esposa de Salgari

 

Neste sentido, podemos associar a paixão de Salgari pelos heróis e pela aventura como uma válvula de escape para a sua triste realidade. Ao escrever sobre paragens exóticas, feitos gloriosos e aventuras destemidas, Salgari estava a sonhar com aquilo que ele próprio nunca pôde viver. Na verdade, o autor possuía apenas um curso inacabado no Instituto Técnico Naval de Veneza e realizou simplesmente “algumas viagens de adestramento a bordo de um navio-escola e […] em navios mercantes de longo curso junto das costas do Adriático e do Mediterrâneo” (Salgari, 1998, p. 5)[5]. Todas as descrições de manobras náuticas nas suas obras baseiam-se nesta parca experiência e numa boa dose de poder imaginativo. De igual modo, as fontes para a concepção do Ciclo dos Corsários foram essencialmente bibliográficas, nomeadamente The History of the Buccaneers of America[6], de Alexandre Olivier Exquemelin, e A General History of the Pyrates (1724), do Capitão Johnson.

Não obstante, é lícito considerar que Salgari não é fátuo, ou ingénuo, o bastante para crer sem reservas nas fanfarronices dos seus heróis de papel. Perpassa sempre pelas suas histórias uma fina comicidade irónica, satírica, pautada na inclusão de alguns personagens encarregados desse papel – veja-se o caso da dupla Carmaux e Wan Stiller, de Moko, e do par Mendoza e Dom Barrejo. Se bem que funcionem como contrapeso cómico ao carácter sério e trágico dos protagonistas, há nestes personagens, sobretudo no par Mendoza/Dom Barrejo, algo de verdadeiramente quixotesco, que parece indicar uma crítica implícita e tácita ao heroísmo cavalheiresco.

Adicionalmente, a vingança é um vector importante das narrativas salgarianas. Está abundantemente presente no Ciclo dos Corsários, com a vendeta de Emilio Roccanera, e nos romances de Sandokan, com o ajuste de contas do príncipe malaio contra a Companhia Britânica das Índias Orientais. Acerca do tema da vingança como motivação literária, Alberto Manguel comenta algures:

 

“Imaginar a retaliação é, essencialmente, inventar histórias, o que constitui um exercício gratificante e saudável. Nessas imaginações, podemos ver concretizada uma forma de justiça e a satisfação vem da consciência intelectual da necessidade, não de nos vingarmos, mas de não permitirmos que o mal continue anónimo” (Manguel, p. 50)[7].

 

Conhecemos a vida atribulada de Salgari, particularmente os abusos de que foi alvo por parte dos seus editores, que enriqueceram à sua custa, enquanto este permanecia numa situação de penúria latente. Neste sentido, em que medida as suas histórias de vingança, que são sempre uma busca de justiça, não são uma retaliação velada contra as constantes injustiças de que foi alvo? Não pode a sua ficção ser uma forma de compensação pelas provações que sofreu, ou ainda, uma forma de satisfação, de que falava Manguel, de não deixar passar despercebidos esses males?

Há um dado que talvez ajude a esclarecer as respostas a estas perguntas. O suicídio de Salgari foi particularmente trágico: tentou levar a cabo a prática samurai da morte ritual, o seppuku (que consiste num acto de auto-evisceração), que correu mal, obrigando-o a cortar o pescoço para pôr fim à vida. Na secretária, deixou uma carta para os editores com as seguintes palavras:

 

“A vós que enriquecestes com o suor do meu trabalho, mantendo-me a mim e à minha família numa contínua semi-miséria, ou ainda pior, peço apenas que, como compensação pelos lucros que vos dei a ganhar, paguem o meu funeral. Saúdo-vos enquanto quebro a minha caneta” (Bernardini & Virga, p. 254)[8].

 

Como legado, Salgari deixou-nos um vasto corpus literário que ainda hoje é capaz de nos fazer sonhar. Sonhar não só com intrépidas proezas, sobretudo com um tempo perdido do auge, ou pretenso auge, pois que nos parece mais reconfortante assim pensar esse passado, da civilização europeia. Um tempo onde a Europa caput mundi partia à redescoberta do mundo, onde a palavra valia ouro, onde os talentos e as vocações tinham valor universalmente reconhecido, e onde as injustiças eram polidamente desfeitas por disputas de cavalheiros. Será, por certo, a esta distância e com os dados que a historiografia nos tem revelado, uma ilusão. Todavia, é de ilusões como esta que uma cultura, uma civilização, vivem e se alimentam. Salgari é o arauto, o prestidigitador dessa doce ilusão. E continua a sê-lo, mesmo de além-túmulo.

 

         Excertos do filme Il Corsaro Nero, dirigido por Sérgio Sollima, ao som da banda sonora de Guido e Maurizio de Angelis
 



[1] É difícil identificar o referido conflito, que não está necessariamente constrangido pelos limites da história. No entanto, podemos tentar. Tendo em conta que a acção se passa no século XVII e se trata de uma contenda entre a França e a Espanha, estamos perante cinco opções: (1) Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), (2) Guerra Franco-Espanhola (1635-1659), (3) Guerra da Devolução (1667-68), (4) Guerra das Reuniões (1683-84), (5) Guerra da Liga de Augsburg (1688-97). Todavia, é necessário ponderar a participação da Sabóia no conflito. Assim sendo, das cinco opções só a (1), a (2) e a (5) são viáveis. Todas estas três hipóteses enquadram-se num teatro de guerra localizado na Flandres. Considerando duas datas (1680 e 1683), mencionadas de raspão entre o primeiro e o segundo volumes do ciclo, a opção (2) será a mais indicada.

[2] Salgari dedica largas páginas à definição e história dos flibusteiros. Resumidamente, na sequência das guerras civis e conflitos religiosos de finais do século XVI e inícios do século XVII, bem como da fuga devido à condenação por pequenos ou grandes crimes, vagas de ingleses, franceses e holandeses fugiram da Europa e refugiaram-se no interior das ilhas do Caribe espanhol. Ali viveram uma vida clandestina e solitária, caçando gado e animais selvagens, defumando depois a carne utilizando uma técnica que lhes foi ensinada pelos índios da região, o boucan, por isso conhecidos como bucaneiros. Perseguidos pelos colonos e pelas autoridades espanholas, os bucaneiros transferiram-se em bandos para a ilha da Tartaruga (Tortuga, na língua hispânica), ao largo do actual Haiti. Lá tomaram contacto com os piratas das costas das Caraíbas, a maior parte deles servindo capitães com carta oficial de corso, outorgada pelos Estados inglês, francês ou holandês, como forma de minar as colónias espanholas da lucrativa América central. Deste encontro surgiu uma sociedade original de mútuo acordo, os flibusteiros, homens intrépidos, de tiro certeiro e mortal, capazes das mais arrojadas façanhas com vista ao enriquecimento fácil que o saque de navios espanhóis de mercadorias proporcionava. Esta sociedade ficaria conhecida para a história como os Irmãos da Costa.

[3] SALGARI, Emilio (1997) – A Rainha das Caraíbas. Lisboa: Círculo de Leitores.

[4] Consultar “Interview Umberto Eco – Derrière les Portes”, minuto 18:24 a 18:35:

https://www.youtube.com/watch?v=iruXg9ma8LU [Consultado a 8-6-2021].

[5] SALGARI, Emilio (1998) – Os Últimos Flibusteiros. Lisboa: Círculo de Leitores.

[6] Publicado originalmente em holandês como De Americaensche Zee-Roovers (1678), mas mais conhecido pela tradução inglesa supramencionada de 1684.

[7] MANGUEL, Alberto (2018) – Embalando a Minha Biblioteca. Lisboa: Edições Tinta-da-China.

[8] BERNARDINI, Paolo L.; VIRGA, Anita; Coords (2013) – Voglio Morire! Suicide in Italian Literature, Culture and Society: 1789-1919. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing. [Tradução da minha responsabilidade a partir do original italiano: “A voi che vi siete arricchiti con la mia pelle, mantenendo me e la mia famiglia in una continua semi-miseria od anche di più, chiedo solo che per compenso dei guadagni che vi ho dati pensiate ai miei funeral. Vi saluto spezzando la penna”.]