quarta-feira, 12 de setembro de 2018

"O Samurai Negro" de João Paulo Oliveira e Costa

A premissa é aliciante: a epopeia lusitana em terras nipónicas narrada em jeito de romance pela mão de um eminente historiador com vasta obra académica publicada sobre o mesmo período, primeiro volume de uma anunciada trilogia, já com o nome de cada tomo definido, Xogum e Chamas de Nagasáqui, respectivamente. A realidade desaponta e revela excessiva a publicidade que rodeia a obra. Não é o primeiro romance histórico de João Paulo Oliveira e Costa que leio. Conheço-lhe o estilo e a estrutura narrativa. Seria lícito pensar que, decorridos oito anos da publicação do seu primeiro romance, tivesse aprimorado a sua escrita ou, no mínimo, sustido a qualidade do primeiro, pelo contrário, O Samurai Negro é inferior a O Império dos Pardais.
 
João Paulo Oliveira e Costa (n. 1962)
Seguindo a informação da contracapa, a história versa sobre três personagens centrais. Pedro da Fonseca, luso-brasileiro, com raízes Tupi que, depois da devastação da propriedade da família pelo ataque de retaliação que matou o pai – resultando do assassínio sumário da mãe adultera –, parte à procura do tio, Álvaro da Fonseca. A acompanha-lo, por sua livre vontade, o amigo Carlos, um príncipe do Congo, cristão convertido enviado a Lisboa com o propósito de se tornar bispo e assim consolidar a aliança do rei de Portugal com o rei do Congo, que, demasiado fogoso para a vida eclesiástica, se instalara no Brasil após naufrágio em direcção a casa. Depois de uma viagem de mais de um ano, da qual pouco nos é relatado, chegam ao Japão, à cidade de Nagasáqui, sede da presença portuguesa, onde encontram Ana, uma japonesa convertida ao cristianismo que será o centro de um triângulo amoroso que percorre todo o romance. Álvaro da Fonseca é um pirata/empresário português nos mares do Sul, com pouso no Japão, onde protege não só a cidade de Nagasáqui como a missão jesuíta que está a evangelizar o país do Sol nascente. Pelo meio, vemo-nos mergulhados nas intrigas doutrinárias da Igreja Católica no oriente, com a Companhia de Jesus a propor uma adaptação do culto e da doutrina católicas ao contexto japonês e a Cúria papal a advogar o estrito cumprimento dos dogmas e práticas originais. Neste contexto, surge um personagem recorrente, Giuseppe, um enviado de um cardeal romano, nunca denominado, para espiar a acção dos jesuítas e reunir informação para uma decisão definitiva do Papado quanto a estas questões. Todas estas personagens, bem como todos os jesuítas presentes, giram à volta de Oda Nobunaga, um poderoso daimyo, senhor feudal, figura histórica que deu início ao período Azuchi-Momoyama (1573-1603), tentando unificar o Japão sob o seu domínio absoluto após pôr fim ao antigo Xogunato Ashikaga, que governava o país em nome do imperador.
 
Oda Nobunaga (1534-1582)
Oliveira e Costa comete um erro crasso, apresenta-nos um romance histórico quando, na verdade, escreveu antes um livro de história narrativa, sem o rigor científico, a metodologia e a indicação das fontes que este requer, disfarçado de romance. Há um pulular incessante de personagens, várias só aparecem uma vez, para morrerem no esquecimento logo de seguida, sem qualquer necessidade narrativa, muito menos desenvolvimento de um perfil psicológico, a não ser acrescentar tonalidade histórica. Tudo se subverte à descrição histórica, desde a paisagem aos mínimos detalhes. A chegada da nau a Nagasáqui, veículo de comércio português e meio de comunicação administrativo do império no oriente, que Costa nos relembra chamar-se “nau do trato”, ou kurofune (literalmente, barco negro em japonês), é pretexto para explicar não só a proveniência de cada mercadoria, mas todo o complicado processo mercantil que permitiu a sua chegada ao Japão, ao mais ínfimo pormenor. Personagens inteiras são criadas para apresentar a intrincada presença lusitana na Ásia, tal como Abdullah, o espião muçulmano de Malaca, servidor do sultão de Áden e da Sublime Porta, que Costa não explica tratar-se do Império Otomano e de um seu Estado vassalo, acérrimo adversário do Império Português do Oriente, que apenas aparece duas vezes numa tentativa gorada de frustrar as boas relações com os japoneses. Outra passagem, o terramoto ocorrido horas após a chegada de Pedro e Carlos a Nagasáqui, é o pretexto para uma analepse que nos leva à Lisboa de 1531 assolada por um violento sismo, ao longo de um capítulo, apenas para explicar que Álvaro, o rude pirata, tinha pânico de tremores de terra, ao ponto de sofrer de incontinência, facto que nunca mais é referido, não obedecendo a qualquer propósito de desenvolvimento da acção.

Em contrapartida, Oliveira e Costa assume serem do conhecimento geral certos termos dificilmente entendidos por quem não é da área. Deste modo, é feita referência constante aos inacianos sem clarificar que se trata de um sinónimo de padre da Companhia de Jesus, proveniente do nome do seu fundador, Santo Inácio de Loyola. Bem assim, vemos constantemente utilizado o termo nanbanjin, que o autor não esclarece tratar-se da expressão utilizada pelos japoneses para designar os portugueses, bárbaros do Sul, para ser preciso, devido ao primeiro contacto luso-nipónico estabelecido em Tanegashima (1543), ilha do Sul do arquipélago do Japão.
 
Biombo Namban do Museu Nacional Soares dos Reis representando o kurofune

O português em que foi escrito O Samurai Negro é outro ponto de incógnita. Logo nas primeiras páginas, damos conta de uma tentativa para recriar o português quinhentista sem, contudo, a coragem de enveredar por um completo uso da estrutura desse formato antigo. Assim, deparamo-nos com a nossa língua moderna com contornos que relembram antes o português do Brasil. Essa tentativa não é de todo impossível, foi realizada com sucesso no romance histórico A Casa do Pó, de Fernando Campos, fruto do labor de onze anos, galardoado com o Prémio Literário Município de Lisboa. Passado igualmente no século XVI, todo a obra está escrita num português quinhentista recriado com minúcia naquele que é um dos romances históricos nacionais mais originais.
 
O Império dos Pardais (2008)
Na capa de O Império dos Pardais, na edição do Círculo de Leitores, pela mão de José Rodrigues dos Santos, encontramos a seguinte frase: “amor, sexo, traição, espionagem, estão aqui todos os ingredientes necessários”. A obra faz jus a essa descrição e apresenta-nos, entre outras cenas, uma violação, uma orgia com um final macabro e, o mais flagrante, uma relação incestuosa, mantida durante décadas, entre pai e filha. Bizarramente, ou talvez não, O Samurai Negro tem também a sua quota-parte de incesto. Em causa está a relação entre Giuseppe, o enviado do cardeal, nomeado bispo no seu regresso, e a sua irmã Flávia. Inicialmente descrita como a companheira do italiano, de quem este tanto se dói em abandonar para cumprir a missão que lhe foi incumbida e a quem tenta ser fiel durante boa parte da viagem, percebemos mais tarde que é casada, e que Giuseppe não é um simples amante, mas também o seu próprio irmão, de quem, inclusive, chega a ter uma filha, Giovanna.
 
Detalhe de um biombo namban, c. de 1593-1600, representando mercadores portugueses no Japão
Olho com estranheza a persistência do incesto nos seus romances. Numa Europa cristianizada há mais de mil anos, ambos os romances se passam no século XVI, com uma ênfase tão acirrada da Igreja Católica na família como núcleo dos bons princípios cristãos, o incesto não era de todo prática generalizada em qualquer estrato da sociedade, era, isso sim, a excepção. A Europa do Renascimento não é a Roma imperial na sua decadência, ou o Egipto antigo, em que era permitido ao faraó, como prática corrente, casar com as filhas, ou outros membros do sexo feminino da sua família (veja-se o caso de Ptolomeu XIII casado com a irmã Cleópatra VII) com vista à perpetuação da linhagem real, tida como divina. Roma, onde vivem Giuseppe e Flávia, já não é a Roma dos Bórgias e do suposto incesto entre Lucrécia e Cesare, hoje contestado por diversos historiadores como parte da propaganda Protestante de descredibilização da Igreja Católica.

Como cereja no topo do bolo, durante uma das peripécias do romance, onde se planeia o assalto a um templo budista no Vietname orquestrado pelos piratas de Álvaro da Fonseca a soldo de um rico comerciante chinês, são postas na boca desse mesmo chinês as seguintes palavras: “Se eles, Han, eram todos parecidos entre si, e os japões, os viets ou os siameses também, como era possível que os portugueses, pelo contrário, fossem todos tão diferentes?” Na sucinta simplicidade desta frase está contida uma clara mancha de racismo. A intenção, percebe-se, pode ter sido a de evidenciar a mestiçagem praticada pelos lusitanos no seu vasto império, como forma de fazer face ao problema constante de falta de população. Todavia, não é lícito crer que um chinês, do século XVI ou do século XXI, pensasse que toda a sua etnia, bem como a japonesa, vietnamita e tailandesa, apresenta uma tão grande homogeneidade de feições praticamente indistinguíveis. Está cientificamente provado que somos nós, caucasianos, a não conseguir diferençar correctamente as feições extremo-orientais. Um chinês reconhece nuances nos rostos dos seus conterrâneos impalpáveis ao olhar europeu. Bem assim, o mesmo acontece em sentido inverso.
 
Fernando Campos (1924-2017)
Durante o congresso internacional «50 Anos de Historiografia: Balanço e Prospectiva» organizado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto entre 3 e 4 de Maio de 2012, o professor Patrick J. Geary apresentou a palestra Writing the Nation: Historians and National Identities from the Nineteenth to the Twenty-first centuries/ Escrever a Nação: Historiadores e Identidades Nacionais, séculos XIX a XXI. Esta versou sobre o papel dos historiadores no desenvolvimento dos nacionalismos europeus, no modo como, na sua óptica, a historiografia, como profissão, tem estado associada à defesa da nação como uma unidade cultural e política. Dedicou-se ainda à forma como este papel mudou ao longo do tempo. De facto, com o abandono da grande síntese, cujo último esforço notável foi o sistema-mundo de Fernand Braudel, a historiografia tem-se evolado na micro-história e nos estudos muito especializados e compartimentados, descorando o global em prol do circunscrito. Semelhante posição, constata Geary, deixa a sede dos públicos nacionais pelo conhecimento geral da sua própria história destinada a ser saciada por um conjunto de aspirantes a historiadores, normalmente jornalistas, que a popularizam sob a forma de romances históricos com muito pouca qualidade. Com vista a apresentar uma alternativa, Patrick Geary apresenta Alexandre Herculano, não só um distinto historiador do seu tempo, com provas académicas reconhecidas, inclusive, a nível internacional, mas também escritor de romances históricos de grande rigor científico, divulgando teses formuladas nas suas investigações e episódios da história portuguesa e peninsular. Em suma, não é impossível conjugar o rigor científico com um romance de qualidade nos nossos tempos. Escapou a Geary Os Reis Malditos, que constituem um exemplo incontornável, do qual O Samurai Negro está muito aquém. Em contrapartida, o panorama literário português dos últimos anos já tem um óptimo precedente no que a romances históricos de qualidade dizem respeito, aberto por Fernando Campos com A Casa do Pó, e obras posteriores como O Cavaleiro da Águia. É este o exemplo que deve ser imolado por historiadores ou romancistas que pretendam apresentar a história de Portugal sob um prisma mais acessível contanto que verossímil e historicamente credível.