A premissa é
aliciante: a epopeia lusitana em terras nipónicas narrada em jeito de romance
pela mão de um eminente historiador com vasta obra académica publicada sobre o
mesmo período, primeiro volume de uma anunciada trilogia, já com o nome de cada
tomo definido, Xogum e Chamas de Nagasáqui, respectivamente. A realidade
desaponta e revela excessiva a publicidade que rodeia a obra. Não é o primeiro
romance histórico de João Paulo Oliveira e Costa que leio. Conheço-lhe o estilo
e a estrutura narrativa. Seria lícito pensar que, decorridos oito anos da
publicação do seu primeiro romance, tivesse aprimorado a sua escrita ou, no
mínimo, sustido a qualidade do primeiro, pelo contrário, O Samurai Negro é inferior a O
Império dos Pardais.
Seguindo a
informação da contracapa, a história versa sobre três personagens centrais.
Pedro da Fonseca, luso-brasileiro, com raízes Tupi que, depois da devastação da
propriedade da família pelo ataque de retaliação que matou o pai – resultando
do assassínio sumário da mãe adultera –, parte à procura do tio, Álvaro da
Fonseca. A acompanha-lo, por sua livre vontade, o amigo Carlos, um príncipe do
Congo, cristão convertido enviado a Lisboa com o propósito de se tornar bispo e
assim consolidar a aliança do rei de Portugal com o rei do Congo, que,
demasiado fogoso para a vida eclesiástica, se instalara no Brasil após
naufrágio em direcção a casa. Depois de uma viagem de mais de um ano, da qual
pouco nos é relatado, chegam ao Japão, à cidade de Nagasáqui, sede da presença
portuguesa, onde encontram Ana, uma japonesa convertida ao cristianismo que
será o centro de um triângulo amoroso que percorre todo o romance. Álvaro da
Fonseca é um pirata/empresário português nos mares do Sul, com pouso no Japão,
onde protege não só a cidade de Nagasáqui como a missão jesuíta que está a
evangelizar o país do Sol nascente. Pelo meio, vemo-nos mergulhados nas
intrigas doutrinárias da Igreja Católica no oriente, com a Companhia de Jesus a
propor uma adaptação do culto e da doutrina católicas ao contexto japonês e a
Cúria papal a advogar o estrito cumprimento dos dogmas e práticas originais.
Neste contexto, surge um personagem recorrente, Giuseppe, um enviado de um
cardeal romano, nunca denominado, para espiar a acção dos jesuítas e reunir
informação para uma decisão definitiva do Papado quanto a estas questões. Todas
estas personagens, bem como todos os jesuítas presentes, giram à volta de Oda
Nobunaga, um poderoso daimyo, senhor
feudal, figura histórica que deu início ao período Azuchi-Momoyama (1573-1603),
tentando unificar o Japão sob o seu domínio absoluto após pôr fim ao antigo
Xogunato Ashikaga, que governava o país em nome do imperador.
Oliveira e Costa
comete um erro crasso, apresenta-nos um romance histórico quando, na verdade,
escreveu antes um livro de história narrativa, sem o rigor científico, a metodologia
e a indicação das fontes que este requer, disfarçado de romance. Há um pulular
incessante de personagens, várias só aparecem uma vez, para morrerem no
esquecimento logo de seguida, sem qualquer necessidade narrativa, muito menos
desenvolvimento de um perfil psicológico, a não ser acrescentar tonalidade
histórica. Tudo se subverte à descrição histórica, desde a paisagem aos mínimos
detalhes. A chegada da nau a Nagasáqui, veículo de comércio português e meio de
comunicação administrativo do império no oriente, que Costa nos relembra
chamar-se “nau do trato”, ou kurofune
(literalmente, barco negro em japonês), é pretexto para explicar não só a
proveniência de cada mercadoria, mas todo o complicado processo mercantil que permitiu
a sua chegada ao Japão, ao mais ínfimo pormenor. Personagens inteiras são
criadas para apresentar a intrincada presença lusitana na Ásia, tal como
Abdullah, o espião muçulmano de Malaca, servidor do sultão de Áden e da Sublime
Porta, que Costa não explica tratar-se do Império Otomano e de um seu Estado
vassalo, acérrimo adversário do Império Português do Oriente, que apenas
aparece duas vezes numa tentativa gorada de frustrar as boas relações com os
japoneses. Outra passagem, o terramoto ocorrido horas após a chegada de Pedro e
Carlos a Nagasáqui, é o pretexto para uma analepse que nos leva à Lisboa de
1531 assolada por um violento sismo, ao longo de um capítulo, apenas para
explicar que Álvaro, o rude pirata, tinha pânico de tremores de terra, ao ponto
de sofrer de incontinência, facto que nunca mais é referido, não obedecendo a
qualquer propósito de desenvolvimento da acção.
Em
contrapartida, Oliveira e Costa assume serem do conhecimento geral certos
termos dificilmente entendidos por quem não é da área. Deste modo, é feita referência
constante aos inacianos sem clarificar que se trata de um sinónimo de padre da
Companhia de Jesus, proveniente do nome do seu fundador, Santo Inácio de
Loyola. Bem assim, vemos constantemente utilizado o termo nanbanjin, que o autor não esclarece tratar-se da expressão
utilizada pelos japoneses para designar os portugueses, bárbaros do Sul, para
ser preciso, devido ao primeiro contacto luso-nipónico estabelecido em
Tanegashima (1543), ilha do Sul do arquipélago do Japão.
O português em
que foi escrito O Samurai Negro é
outro ponto de incógnita. Logo nas primeiras páginas, damos conta de uma
tentativa para recriar o português quinhentista sem, contudo, a coragem de enveredar
por um completo uso da estrutura desse formato antigo. Assim, deparamo-nos com
a nossa língua moderna com contornos que relembram antes o português do Brasil.
Essa tentativa não é de todo impossível, foi realizada com sucesso no romance
histórico A Casa do Pó, de Fernando
Campos, fruto do labor de onze anos, galardoado com o Prémio Literário
Município de Lisboa. Passado igualmente no século XVI, todo a obra está escrita
num português quinhentista recriado com minúcia naquele que é um dos romances
históricos nacionais mais originais.
Na capa de O Império dos Pardais, na edição do Círculo
de Leitores, pela mão de José Rodrigues dos Santos, encontramos a seguinte
frase: “amor, sexo, traição, espionagem, estão aqui todos os ingredientes
necessários”. A obra faz jus a essa descrição e apresenta-nos, entre outras
cenas, uma violação, uma orgia com um final macabro e, o mais flagrante, uma
relação incestuosa, mantida durante décadas, entre pai e filha. Bizarramente,
ou talvez não, O Samurai Negro tem
também a sua quota-parte de incesto. Em causa está a relação entre Giuseppe, o
enviado do cardeal, nomeado bispo no seu regresso, e a sua irmã Flávia.
Inicialmente descrita como a companheira do italiano, de quem este tanto se dói
em abandonar para cumprir a missão que lhe foi incumbida e a quem tenta ser
fiel durante boa parte da viagem, percebemos mais tarde que é casada, e que
Giuseppe não é um simples amante, mas também o seu próprio irmão, de quem,
inclusive, chega a ter uma filha, Giovanna.
Olho com
estranheza a persistência do incesto nos seus romances. Numa Europa
cristianizada há mais de mil anos, ambos os romances se passam no século XVI,
com uma ênfase tão acirrada da Igreja Católica na família como núcleo dos bons
princípios cristãos, o incesto não era de todo prática generalizada em qualquer
estrato da sociedade, era, isso sim, a excepção. A Europa do Renascimento não é
a Roma imperial na sua decadência, ou o Egipto antigo, em que era permitido ao
faraó, como prática corrente, casar com as filhas, ou outros membros do sexo
feminino da sua família (veja-se o caso de Ptolomeu XIII casado com a irmã
Cleópatra VII) com vista à perpetuação da linhagem real, tida como divina.
Roma, onde vivem Giuseppe e Flávia, já não é a Roma dos Bórgias e do suposto
incesto entre Lucrécia e Cesare, hoje contestado por diversos historiadores
como parte da propaganda Protestante de descredibilização da Igreja Católica.
Como cereja no
topo do bolo, durante uma das peripécias do romance, onde se planeia o assalto
a um templo budista no Vietname orquestrado pelos piratas de Álvaro da Fonseca
a soldo de um rico comerciante chinês, são postas na boca desse mesmo chinês as
seguintes palavras: “Se eles, Han, eram todos parecidos entre si, e os japões,
os viets ou os siameses também, como era possível que os portugueses, pelo
contrário, fossem todos tão diferentes?” Na sucinta simplicidade desta frase
está contida uma clara mancha de racismo. A intenção, percebe-se, pode ter sido
a de evidenciar a mestiçagem praticada pelos lusitanos no seu vasto império,
como forma de fazer face ao problema constante de falta de população. Todavia,
não é lícito crer que um chinês, do século XVI ou do século XXI, pensasse que
toda a sua etnia, bem como a japonesa, vietnamita e tailandesa, apresenta uma
tão grande homogeneidade de feições praticamente indistinguíveis. Está
cientificamente provado que somos nós, caucasianos, a não conseguir diferençar
correctamente as feições extremo-orientais. Um chinês reconhece nuances nos rostos dos seus conterrâneos
impalpáveis ao olhar europeu. Bem assim, o mesmo acontece em sentido inverso.
Durante o
congresso internacional «50 Anos de Historiografia: Balanço e Prospectiva»
organizado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto entre 3 e 4 de
Maio de 2012, o professor Patrick J. Geary apresentou a palestra Writing the Nation: Historians and National
Identities from the Nineteenth to the Twenty-first centuries/ Escrever a Nação:
Historiadores e Identidades Nacionais, séculos XIX a XXI. Esta versou sobre
o papel dos historiadores no desenvolvimento dos nacionalismos europeus, no
modo como, na sua óptica, a historiografia, como profissão, tem estado
associada à defesa da nação como uma unidade cultural e política. Dedicou-se
ainda à forma como este papel mudou ao longo do tempo. De facto, com o abandono
da grande síntese, cujo último esforço notável foi o sistema-mundo de Fernand
Braudel, a historiografia tem-se evolado na micro-história e nos estudos muito
especializados e compartimentados, descorando o global em prol do circunscrito.
Semelhante posição, constata Geary, deixa a sede dos públicos nacionais pelo
conhecimento geral da sua própria história destinada a ser saciada por um
conjunto de aspirantes a historiadores, normalmente jornalistas, que a
popularizam sob a forma de romances históricos com muito pouca qualidade. Com
vista a apresentar uma alternativa, Patrick Geary apresenta Alexandre
Herculano, não só um distinto historiador do seu tempo, com provas académicas
reconhecidas, inclusive, a nível internacional, mas também escritor de romances
históricos de grande rigor científico, divulgando teses formuladas nas suas
investigações e episódios da história portuguesa e peninsular. Em suma, não é impossível
conjugar o rigor científico com um romance de qualidade nos nossos tempos.
Escapou a Geary Os Reis Malditos, que
constituem um exemplo incontornável, do qual O Samurai Negro está muito aquém. Em contrapartida, o panorama literário
português dos últimos anos já tem um óptimo precedente no que a romances
históricos de qualidade dizem respeito, aberto por Fernando Campos com A Casa do Pó, e obras posteriores como O Cavaleiro da Águia. É este o exemplo
que deve ser imolado por historiadores ou romancistas que pretendam apresentar
a história de Portugal sob um prisma mais acessível contanto que verossímil e
historicamente credível.