sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

"Uma Aventura de Astérix, o Gaulês" de René Goscinny e Albert Uderzo

 

Qual é o valor da literatura? Qual o papel que representa na vida dos seus leitores? E, por extensão, qual o papel desempenhado pela literatura nas sociedades humanas? Três grandes questões que já fizeram correr rios de tinta, inspiraram reflexões, livros, ensaios filosóficos e trabalhos académicos sem conta. Não é minha pretensão respondê-las ou sequer acrescentar o meu parco contributo a este debate. Peço apenas aos leitores destas linhas que, durante alguns minutos, possam reflectir sobre o tema. Diria mais: pensem, sobretudo, no valor e importância da literatura nas suas próprias vidas.

Após esta breve meditação, peço-vos que tentem lembrar-se das vossas primeiras leituras, aquelas que, ainda em tenra idade, os fizeram sonhar e embarcar nas primeiras viagens literárias. As respostas serão certamente variadas. Contudo, estou seguro de que, em diversos casos, entre as primeiras leituras de um número apreciável de entre vós se encontrou algum álbum de Astérix. Pessoalmente, posso asseverar-vos que faço parte desse grupo. Li As 1001 Horas de Astérix com cerca de 9 anos e não só o álbum plantou em mim as sementes do que viria a ser o meu perene amor pela literatura, alguns anos mais tarde, como posso traçar uma linha ininterrupta entre ele e o meu interesse longevo pelas Mil e Uma Noites, que é a base de outro, ainda mais significativo, fascínio pelo Oriente.

René Goscinny (1926-1977)

 

Qual o motivo deste prólogo? Serve como fundamento para a seguinte afirmação: os álbuns de Astérix são uma das melhores portas de entrada no belo, labiríntico e vivificante edifício que é a literatura – poderia dizer outro tanto sobre Tintim e, talvez, Lucky Luke, mas não é deles que tratamos hoje. Os números falam por si. Os seus álbuns foram já traduzidos para 107 línguas e dialectos[1] e, até 2019, venderam-se 380 milhões de cópias a nível mundial[2]. Por comparação, até ao mesmo ano, Tintim foi traduzido para 110 línguas e vendeu 270 milhões de cópias[3]. Tamanha proporção não se deve apenas a bem-sucedidas campanhas de marketing, revelam, antes de mais, a qualidade das obras da dupla Goscinny e Uderzo, capazes de agradar a todas as idades, nacionalidades e tipos de público.

 

Albert Uderzo (1927-2020)

 

Se bem que um estudo aprofundado das causas deste sucesso e qualidade literária não se coadune com o espaço e meio destas parcas linhas, podemos fazer um exercício de aproximação. Comecemos pelo início. Os primeiros quadradinhos intitulados Uma Aventura de Astérix, o Gaulês surgiram a 29 de Outubro de 1959, no número inicial da revista Pilote – criação conjunta dos amigos e homens de letras e das artes Jean-Michel Charlier, Albert Uderzo, René Goscinny, Raymond Joly e Jean Hébrard. A revista tinha em mente a apresentação de um herói ligado à história de França. Goscinny e Uderzo juntaram-se e optaram pelo período romano. Tendo por base Vercingétorix, líder da resistência gaulesa às conquistas militares de Júlio César, os autores apropriaram-se do sufixo “rix” (que significa “rei” em gaulês) e definiram a letra A, primeira do alfabeto, como fórmula de base para a criação do nome do personagem principal, de onde provém Astérix. Para os seus companheiros gauleses bastou simplificar o sufixo “rix” para “ix”. A história inaugural findaria a serialização a 14 de Julho de 1960, sendo posteriormente publicada em formato de álbum pela Dargaud em 1961. As aventuras seguintes mantiveram a serialização inicial na Pilote, e consequente lançamento em álbum, até 1973, sendo Astérix na Córsega o último a seguir este esquema bipartido.

 

Simbologia Etimológica de Astérix

 

Capital na construção da narrativa é a simbologia etimológica dos nomes dos personagens. É este mecanismo que permite e alimenta a constante e inerente dinâmica satírica pela qual os álbuns de Goscinny e Uderzo são internacionalmente conhecidos. De facto, esta veia satírica e crítica está presente desde a génese da BD, como o prova a desconstrução do nome do protagonista, Astérix. Trata-se de um jogo com a fonética da palavra homófona “astérisque” (“asterisco”), de onde se podem retirar duas ilações mutuamente concordantes. A um nível superficial, na sua qualidade de asterisco, só poderia ser alguém de baixa estatura, tantas vezes alvo de surpresa pela astúcia e força, inesperadas em indivíduo tão pequeno. Num substrato mais profundo, é significativo que o nome da série se designe “Asterisco”, pois evidencia a intenção dos autores de que os álbuns funcionem como notas de rodapé, em jeito de comentário, à História.

 

1ª Aparição de Panoramix, retratado como um eremita no vol. 1 (ed. Meribérica, 1996)

 

Uma análise etimológica dos outros personagens que povoam a série fornece-nos mais pistas sobre este propósito glosador. Surgindo como personagem secundária de Astérix, Obélix, o carregador de menires, cedo se torna, logo a partir do segundo álbum, A Foice de Ouro, o seu companheiro inseparável. Obélix deriva da palavra francesa “obélisque” (“obelisco”), sugerindo uma comparação entre as suas formas arredondadas e bojudas com o formato das colunas egípcias homólogas, assim como uma referência indirecta ao seu trabalho. Ademais, “obelisk” ou “obelus” é um símbolo tipográfico, em forma de adaga, que serve de suporte e acompanha o asterisco, à imagem da amizade simbiótica com Astérix.

Exemplos de um jogo igualmente inteligente e divertido podem ser encontrados em Panoramix e Assurancetourix. O primeiro é o druida da aldeia, inventor da poção mágica. O seu nome advém de “panoramique” (“panorâmico”), isto é, alguém com visão panorâmica, sábio, capaz de discernir ao longe intenções e acontecimentos, previdente, dominando o horizonte circundante. O segundo, o bardo eternamente incompreendido, resulta da expressão “assurance tous risques” (“seguro contra todos os riscos”). Daqui se depreende uma pessoa capaz de sobreviver a todas as circunstâncias, naturalmente nefastas, pois está seguro, prevenido, contra todos os riscos.

 

Panoramix de traços suavizados, final do vol. 1 (ed. Meribérica,1996)

 

Num tom de fina caricatura política, Goscinny e Uderzo introduzem Abraracourcix, o chefe da aldeia dos irredutíveis. O nome esconde um trocadilho, “à bras raccourcis”, “de braços muito curtos” ou “a toda a força”. Ou seja, alguém com um falso sentido de importância, simultaneamente sempre pronto para a batalha, mas de braços muito curtos, cuja força não se equipara à sua jactância. Tendo em conta a sua caracterização física e o seu carácter, à luz do período histórico de surgimento de Astérix, o candidato mais provável para alvo desta sátira é o general De Gaulle. À imagem de De Gaulle, Abraracourcix é veterano de guerra, este das guerras galo-romanas, aquele da Segunda Guerra Mundial. Tal como De Gaulle, é obrigado a fugir da sua última batalha, numa debandada desenfreada, ficando, no entanto, doravante conhecido pela sua participação na mesma. Trata-se de uma clara alusão a Dunquerque e ao papel do general no conflito. A categoria de chefe “incontestável” da aldeia e a sua propensão para a pompa marcial relembram o estilo e a posição política de De Gaulle na França do pós-guerra. A reacção dos autores (que pode ser consultada aqui) a estas similitudes, quando confrontados em entrevista, é reveladora pela ambiguidade e duplo sentido das suas palavras.

Paralelamente, a decomposição dos nomes dos personagens romanos denota um estudo de carácter indicativo da sua função de antagonistas, tanto dos gauleses como da sociedade moderna, livre, democrática e pluralista. Tomemos como exemplo Caius Bonus e Marcus Sacapus, respectivamente o centurião e comandante da guarnição de Petibonum (uma das quatro que cercam a aldeia gaulesa) e o decurião, segundo na hierarquia. Quanto ao primeiro, Caius é um nome próprio latino relativamente comum, já Bonus vem de gratificação, vantagem, bonificação. O nosso Caius Bonificação é uma alegoria à ambição desmedida no exercício de cargos públicos. O segundo, Sacapus provém da expressão “sac à puces” (“saco de pulgas”). Marcus Saco de Pulgas, ou Pulguento, é, tal como o nome indica, um ser desagradável, sujo no sentido venal, de pouca confiança, sendo uma metáfora do político corrupto.

 

Astérix em Portugal

 

Astérix, o Gaulês chegou a Portugal com bastante rapidez, a 4 de Maio de 1961, pela mão da revista de BD Foguetão, números 1 a 13. Foi posteriormente (re)publicado na revista Cavaleiro Andante, entre 1961/2, nos números 510 a 525; e lançado em álbum em 1967, pela Editorial Íbis. Até 1972, a publicação em formato de livro ficou a cargo de uma parceria editorial entre a Íbis e a Livraria Bertrand Editora, ano em que a primeira é incorporada no grupo Bertrand. Doravante, os álbuns de Astérix contêm a chancela exclusiva da Bertrand até 1983. Durante um breve período, de 1987 a 1989, os direitos de publicação foram assumidos pela Difusão Verbo, que publicou o vol. 28, As 1001 Horas de Astérix e reeditou os três anteriores. De 1989 a 2003, os direitos passaram para a Meribérica (depois Meribérica/Liber, após fusão), que lançou em primeira mão os álbuns 29 a 32, e reeditou todos os anteriores. Desde 2004, os direitos estão na posse da Asa. A paralela publicação em periódicos manteve-se até ao vol. 26, A Odisseia de Astérix, passando pelas revistas Tintin (1968-1982) e Flecha (1978), e os jornais Diário Popular (suplemento Flecha 2000, 1985/6), Jornal da BD (1982-87) e Diário de Notícias (suplemento BDN, 1990/1).

 

Astérix e Obélix, de traços bem diferentes dos iniciais, vol. 5 (Meribérica,2002)

 

Com a passagem dos direitos de autor para a Asa veio uma nova tradução da maioria dos nomes de Astérix, que teve como fito aportuguesar as referências simbólicas da etimologia respectiva[4]. Em 2012, começou um processo de remasterização, em linha com as indicações expressas de Uderzo para novas reedições dos álbuns em todo o mundo[5]. Esta remasterização visou uma padronização de traços característicos de personagens, cenários e coloração, que eliminou gralhas, harmonizou os traços estilísticos num todo coerente e corrigiu alguns erros históricos.

Pese embora tenham a sua utilidade, estas alterações descaracterizaram a série. As novas traduções anulam a simbologia etimológica que esteve na origem de Astérix e que constitui o seu mais importante veículo de sátira social e crítica de costumes. A remasterização apagou os traços e processos evolutivos e criativos pelos quais passaram as personagens, nos seus longos anos de existência, impossibilitando uma leitura histórica da série.

Assim sendo, é recomendável a leitura das edições anteriores à Asa, pelo menos até ao vol. 32, Astérix e a Latraviata, (a partir daí os álbuns são exclusivos desta editora) de modo a ter acesso directo às traduções e ilustrações mais próximas dos originais franceses. Só este contacto permitirá um entendimento mais fino das origens, da tessitura narrativa, e sua evolução, e dos alvos visados pelas sátiras. De todas as edições disponíveis, as da Meribérica são as mais sistemáticas, incluindo todas as obras até à transição para a Asa.  

 

Considerações Finais

 

Tentemos, por fim, dar resposta, mesmo que apenas aproximada, à proposição inicial sobre as causas do sucesso e qualidade literária internacionalmente comprovados de Astérix. A um nível superficial, podemos sinalizar a grande permeabilidade da série em ser convertida em objectos de merchandising muito vendáveis. A tendência começou ainda nos anos de 1960, em França, com o lançamento de brinquedos coleccionáveis das personagens. Rapidamente esta capitalização ganhou outras proporções com a adaptação do primeiro volume para um filme de desenhos animados, em 1967, com mais oito lançamentos para o grande ecrã nas décadas seguintes. Quatro longas-metragens em formato live-action foram concebidas a partir de 1999, com grande adesão internacional. Desde então, a lista é interminável, contando, entre inúmeros produtos personalizados de todos os tipos e feitios, com quinze jogos de tabuleiro, quarenta videojogos e um parque temático perto de Paris.

 

Colecção particular de merchandising de Astérix (fonte: Twitter@Lulu6kat)

 

Todavia, se bem que esta enumeração, de dimensões pantagruélicas, possa esclarecer parte do enorme volume de vendas dos álbuns, não só não explica a sua totalidade, como nada diz sobre a qualidade literária da série. A crítica tem apresentado as suas teorias para a clarificação deste fenómeno. Uma parte afirma que Astérix é a metáfora da resistência da cultura e da língua francófonas contra a anglofonia cada vez mais dominante no globo, desde a década de 1950. Outra, por sua vez, vê na série a fonte da recuperação do orgulho francês, gravemente ferido após a derrota humilhante na Segunda Guerra Mundial e o colaboracionismo vergonhoso do regime de Vichy, através da redescoberta do passado gaulês da nação[6].  

Ambas as teorias sofrem, contudo, de uma falha: concentram-se exclusivamente em França e no contexto histórico-político inicial em que surgiu a série. Mesmo que sustentadas por evidências, sobretudo a segunda, a verdade é que apenas explicam parte da questão, o sucesso fulgurante que exerceu junto do público francês. Nada é dito quanto à igual popularidade internacional de Astérix. Convenhamos, o resto do mundo não se rege pela batuta do gosto e das exigências do orgulho franceses, por muito que isso os lisonjeasse.

É preciso, portanto, procurar a causa em outro lugar. Na minha opinião, a solução encontra-se, mais uma vez, na etimologia. Tal como demonstrei no início do texto, ao definir o nome do protagonista e, por extensão, da série como “Asterisco”, Goscinny e Uderzo não procuravam apenas evidenciar que esta funcionaria como uma espécie de notas de rodapé da História. Deram a entender, de igual modo, se fizermos o exercício de justapor a nomenclatura à ilustração, que se trataria de uma história sobre um personagem pequeno e aparentemente inofensivo, menosprezado com facilidade pelos seus antagonistas, que sempre os surpreende através da astúcia e de uma força insuspeitadas. A lógica está tanto mais correcta quanto pode abarcar de igual modo a aldeia gaulesa. Como prova, basta consultar a introdução que consta de todos os álbuns: “estamos no ano 50 antes de Jesus Cristo. Toda a Gália está ocupada pelos romanos… Toda? Não! Uma aldeia habitada por irredutíveis gauleses resiste ainda e sempre ao invasor” (Goscinny & Uderzo, p. 3)[7].

Concluindo, na sua génese, Astérix é uma metáfora da luta eterna entre um David, triunfante contra todas as probabilidades, e um Golias todo-poderoso, derrotado mesmo dispondo de recursos inesgotáveis. Que o David se chame Astérix, personificação dos gauleses, e o Golias, Júlio César, símbolo máximo do Império Romano, pouco importa, pois a disputa pode ser metaforicamente adaptada e readaptada consoante as circunstâncias espácio-temporais, culturais e biográficas do leitor. É aqui que reside o brilhantismo irresistível de Astérix.



[3] https://www.tintin.com/en/essentials# [Consultado a 27-1-2022].

[7] GOSCINNY, René; UDERZO, Albert (1996) – Uma Aventura de Astérix, o Gaulês. Lisboa: Meribérica/Liber Editores.