segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

"D. João ou o Banquete de Pedra" de Molière


A 16 de Fevereiro de 2006 estreou no Teatro Nacional de São João, com encenação de Ricardo Pais, D. João ou O Banquete de Pedra. A presente edição constitui a tradução encomendada a Nuno Júdice para essa produção, publicada em conjunto com a editora Campo das Letras. Trata-se de uma das obras mais influentes de Molière, responsável pela divulgação do mito do eterno sedutor inveterado, que salta de conquista em conquista sem uma pinga de remorso pelos objectos da sua líbido, o Dom Juan, figura transversal da cultura europeia.
 
Molière (1622-1673)

Todavia, se Molière é responsável pela divulgação desse mito, não foi o seu inventor. As suas origens remontam à Espanha do Siglo de Oro, particularmente à peça de Tirso de Molina, El Burlador de Sevilla y Convidado de Piedra (1630), escrita com um propósito moralizante demonstrativo da inevitabilidade do pagamento pelos pecados mortais que nem o arrependimento pode salvar. Isto é, numa época cosmopolita como foi o século XVII, prolífico em tentações para um bom cristão, numa Espanha, sede de um império internacional, ainda impregnada de fanatismo religioso, em que a crença de absolvição divina dos pecados e falhas através do arrependimento antes da morte era geral, Tirso de Molina pretendeu demonstrar que um pecador como Dom Juan não estava imune à condenação divina, com ou sem acto de contrição. É com base neste substrato que Molière irá adaptar os elementos essenciais da obra de Molina, o personagem principal e o seu maquiavelismo libidinoso, para conceber a sua versão, em 1665.
 
Tirso de Molina (1579-1648)

A peça abre in medias res após uma das incontáveis conquistas amorosas de D. João Tenório, que serve de modelo às posteriores: sedução, promessas de amor eterno, casamento, posse sexual consumada e fuga de volta ao seu palácio na Sicília (reino pertencente ao ramo espanhol da casa de Habsburgo até ao início do século XVIII). Gusmão, criado de Dona Elvira, a última conquista em causa, tenta saber o paradeiro do suposto esposo da sua senhora, apenas para descobrir, pela boca de Esganarelo, o criado consciencioso do fidalgo, os ardis em que esta se viu enredada, o casamento inválido, pelo simples facto de D. João contar já com uma colecção infindável de casamentos, as promessas e juras vãs, a fuga declarada. Entretanto, estão já em marcha os planos de uma nova conquista, uma bela rústica, e nem o confronto com a própria Dona Elvira e as suas ameaças de vingança demovem D. João.

Os planos vêem-se frustrados por uma tempestade, que afunda o barco onde navegavam D. João e Esganarelo. No entanto, o salvamento, por parte de uns pescadores, serve os intentos do sedutor inveterado ao proporcionar-lhe o encontro com duas camponesas, Carlota e Maturina, que conquista facilmente e a quem propõe casamento, separadamente. Não obstante, os resultados positivos da sua persuasão serão gorados pelo anúncio da perseguição de D. João por um grupo de dois homens, que mais tarde se sabe serem os irmãos de Dona Elvira, D. Alonso e D. Carlos. Disfarçados, Esganarelo como médico e o amo como camponês, encontram um homem a ser assaltado, homem que D. João diligentemente salva. A pessoa em causa é D. Carlos, e o seu salvamento irá valer a Tenório um adiamento, por um dia, da consumação da vingança dos irmãos despeitados.
 
Primeira edição da peça (1682)

No caminho de volta a casa, amo e criado deparam-se com um túmulo ricamente decorado pertencente a outra vítima do próprio D. João, desta feita de assassinato, o Comendador. Num acto de profundo desrespeito e descrença, Tenório convida a estátua do Comendador para uma refeição sem saber até onde o levará esta temeridade. No palácio, aguarda-o o credor, Sr. Domingos, personificação do burguês agiota sempre disposto a servir e adular a nobreza com vista ao máximo lucro, habilmente despachado pelas artimanhas dom-joanescas. Assistimos então à conversão de D. João à hipocrisia, a última falha que faltava no seu cardápio de misérias humanas, através de uma longa lição a Esganarelo. O seu plano: partindo do princípio que o mundo pertence aos hipócritas, e que estes se protegem mutuamente para manter as aparências, D. João propõe juntar-se ao grupo, fingindo redimir-se dos seus pecados, levando uma vida devota e casta, segundo os preceitos da Igreja e dos costumes, apenas para mais facilmente dar azo à sua vida dissoluta. É com base nesta falsa redenção que convence o pai, D. Luís Tenório, honrado e ingénuo senhor, a defender publicamente a sua causa em relação à vendeta da família de Dona Elvira. Seguro já da sua posição, livre dos constrangimentos da última aventura, D. João prepara-se para um manancial de novas conquistas quando é surpreendido pela presença da estátua do Comendador. Vem exigir o cumprimento do convite, feito no mausoléu do defunto, para comer. Aceitando prontamente o convite, D. João é finalmente punido pelos seus crimes, enviado directamente para o inferno através de um abismo de fogo e relâmpagos, deixando Esganarelo aterrado, clamando pelos honorários que nunca recebeu.

Cena final de Don Giovanni, adaptação operática da peça

Utilizando uma divisão clássica em cinco actos, Molière cataloga D. João como uma comédia e aqui reside a sua inovação. Não se trata de uma simples sátira, mas sim de uma verdadeira comédia humana, servindo-se da estrutura grega deste género para criar a derradeira tragédia, aquela que decalca os defeitos do homem, não já dependente dos deuses, mas sozinho consigo mesmo, a nu com todos os seus demónios, aos quais adora e persiste em não renegar até ao fim. Comédia humana no exacto sentido de La Comédie Humaine de Balzac, prova dos paralelismos entre o barroco e o romantismo que aponta Fernand Braudel em O Modelo Italiano.

Primeiramente, D. João é uma crítica à sociedade francesa através de duas perspectivas, a popular, a partir da boca de Esganarelo, que vai alfinetando a iniquidade do Antigo Regime que permite a impunidade jurídica do nobre; e a erudita, com base em Dom Juan, cujo cinismo e hipocrisia maquiavélica lhe permitem discorrer sobre os vícios e calcanhares de Aquiles da sociedade barroca, que este bem conhece e utiliza a seu favor: a adulação da nobreza assumida como o patamar a atingir pela burguesia endinheirada, a credulidade cristã que mascara as reais intenções dos acérrimos defensores dos seus dogmas, o valor sacralizado da palavra dada que permite até firmar casamentos juridicamente impossíveis.
 
Luís XIV e Molière (1863), de Jean-Léon Gérôme

Surgido apenas um ano a seguir a Tartufo (1664), outra grande comédia humana, que sofrera uma acirrada censura régia, Molière tenta mascarar em D. João a sua crítica mordaz com o castigo divino exemplar do veículo desses juízos. Na verdade, aquilo que consegue é algo mais profundo, a crítica a um dos grandes pilares do sistema seiscentista de valores, o cavalheirismo. Não é por acaso que o dramaturgo manteve não só o nome espanhol do personagem principal bem como a localização da acção em terras de Espanha, esta era a pátria do modelo do cavalheirismo então professado na Europa. Com origens na cavalaria andante da Idade Média, o cavalheiro espanhol era aguerrido, corajoso, sempre disposto a arriscar a vida para salvar familiares e amigos, bem como belas donzelas a quem cobria com o manto da sua protecção, a quem adulava romanticamente com elogios francos, juras e promessas solenes, e para o qual a palavra e a honra eram o garante da sua idoneidade. Para tal propagação deste modelo contribuíram os feitos políticos e militares que elevaram a Espanha à categoria de potência mundial, no século XVI, e o imenso sucesso de Dom Quixote de La Mancha, cujo ideal cavaleiresco estabelece o corpus da conduta do cavalheirismo de 1600. Dom Juan, o anti-Quixote, demonstra o lado pernicioso deste sistema de valores.
 
O Nobre com a Mão no Peito, de El Greco, epítome do cavalheirismo

O impacto da peça de Molière e a sua actualidade medem-se pelas repercussões que causaram posteriormente no panorama cultural. Mozart compõe a ópera Don Giovanni, com libreto de Lorenzo da Ponte, em 1787, uma adaptação muito aproximada de D. João. Byron publica o poema épico homónimo, Don Juan, entre 1819 e 1824, apresentando o personagem principal como uma vítima do poder de sedução feminina, com referências autobiográficas. Camus usa Dom Juan como personagem no ensaio O Mito de Sísifo (1942) para exemplificar a sua filosofia do absurdo.
 
Nuno Júdice (1949)

Por fim, a tradução de Nuno Júdice dá-nos a conhecer a peça com um apurado rigor de verossimilhança. Denotam-se os diferentes níveis de cultura entre Dom Juan e Esganarelo nos seus discursos. Sobretudo, a opção da tradução do patois inventado por Molière – quem sabe se com base num conhecimento real do falar popular entretanto perdido – para os personagens rústicos, como Carlota e Maturina, para o falar “caxineiro” das comunidades piscatórias de Vila do Conde acrescenta uma tonalidade muito verídica que nos aproxima do texto francês fazendo desta a melhor tradução, até à data, de D. João.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

"A Voz Subterrânea (Memórias do Subterrâneo)" de Fiódor Dostoiévski



Em início de carreira, Fiódor Dostoiévski dedicou-se ao social, através da sua aclamada estreia Gente Pobre, e ao psicológico, com O Duplo. Depois do exílio na Sibéria, que o marcou profundamente, não só na saúde como na sua mundividência, e deu origem aos Cadernos da Casa Morta, a primeira descrição publicada das prisões russas, e a Humilhados e Ofendidos, alusivo das preocupações sociais do seu primeiro romance, Dostoiévski enveredou pelo movimento que o iria eternizar, o existencialismo. A Voz Subterrânea – mais conhecida como Memórias (ou Notas) do Subterrâneo – é fruto dessa segunda fase literária.
 
Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Estruturalmente, a obra encontra-se dividida em duas partes que, embora estilisticamente distintas, se complementam para criar um quadro muito vivo de alienação auto-imposta. A primeira tem o formato de um ensaio, no qual o narrador, que nunca revela a identidade para além da idade, quarenta anos, expõe a sua metafísica do subterrâneo. Antigo funcionário, de patente inferior, da administração imperial russa, o narrador, chamemos-lhe “homem do subterrâneo”, mantém-se, entretanto, através de uma pequena herança, abdicando do serviço civil e de todas as obrigações sociais, é uma metafísica da inércia e da reclusão contemplativa, negativa e rancorosa, que nos propõe. Começando por divagar sobre a necessidade da dor e do sofrimento como princípios da liberdade, o “homem do subterrâneo” evolui para criticar o determinismo, especialmente o utopismo da moral e das acções humanas ditadas pela lógica, presente em O Que Fazer?, de Tchernichévski. Em contrapartida ao problema de matemática dois mais dois igual a quatro, a forma a que reduz esse utopismo, o “homem do subterrâneo” advoga que, muitas vezes, ele, e uma certa maioria das pessoas, entendem essa soma como três, ou cinco, numa clara alusão à irracionalidade inerente ao género humano. Partindo dessa irracionalidade, o narrador expõe a sua defesa do livre arbítrio, pese embora de forma negativa, dando o seu próprio exemplo de vida, contado na segunda parte da obra.
 
Edição portuguesa de O Que Fazer? (2017)

Intitulada “A Propósito da Neve Derretida”, e encabeçada pelo excerto de um poema de Niekrássov, que ajudou Dostoiévski a publicar a sua primeira obra, esta segunda metade recua dezasseis anos até à juventude do narrador. Após abandonar uma carreira promissora no exército, o “homem do subterrâneo” obtém recomendação para trabalhar numa repartição da administração central do Estado, na capital, onde tem mais liberdade para se dedicar à leitura indolente e à sua misantropia paranóica. Não convive com praticamente ninguém no trabalho, a não ser, ocasionalmente, o chefe, Anton Antônitch, a quem pede dinheiro emprestado. Apesar da sua aversão ao convívio humano, é com vergonha e remorso que o “homem do subterrâneo” se vê forçado a admitir que não consegue evitar vagabundear pela noite de São Petersburgo, em busca de prazer, e amiúde frequentar a casa do único amigo, Siemiônov. Numa dessas visitas, reencontra velhos colegas de escola que organizavam um jantar de despedida ao antigo rival da adolescência do narrador, Zvierkov, prestes a partir para um proveitoso posto militar no Cáucaso. Despeitado por ser colocado à margem da combinação, o “homem do subterrâneo” faz-se convidado apenas para mostrar o seu desprezo pelo próspero oficial, endividando-se para poder estar presente e embebedando-se ao ponto do ridículo. Não contente com isso, segue os “amigos” até ao bordel que habitualmente frequentam, pronto a desafiar Zvierkov e companhia para um duelo e arruinar definitivamente a sua vida. Por sorte, em vez deles cruza-se antes com Lisa, recente no estabelecimento. Depois de um encontro íntimo fugaz, dá-se o ponto central da narrativa: a discussão metafísica entre o “homem do subterrâneo” e Lisa. Aqui, a última representa o ponto de vista de Tchernichévski, de uma vida logicamente subordinada a um princípio utópico, no caso, o sucesso na profissão de prostituta ao ponto de conseguir abandona-la em prol de uma vida socialmente aceitável, ao lado de um salvador que a encontra, protege e resgata. Enquanto isso, o “homem do subterrâneo” desconstrói essa idealização romântica confrontando Lisa com a realidade dos factos, a posição periclitante no bordel, acumulando dívidas à matrona, consumindo os seus melhores anos numa vida desgastante e tendo como fim último a sarjeta, a abjecção pública e a penúria, assim que a sua beleza se desvanecer. A princípio, Lisa toma-o como o seu suposto salvador, aquele que a alerta para os perigos da sua situação, e procura-o em casa apenas para constatar o extremo egoísmo misantrópico do “homem do subterrâneo”, desfazendo-lhe as últimas esperanças.
 
Nikolai Tchernichévski (1828-1889)

A Voz Subterrânea (1864) é considerada uma das primeiras obras existencialistas da história, sem dúvida o ponto de viragem dos romances sociais e psicológicos de Dostoiévski para os de carácter existencial. Precedendo em apenas dois anos a publicação de Crime e Castigo (1866), não é por acaso que tem sido vulgarmente publicada em conjunto com esta, como na edição da Chancellor Press de 1994, Crime and Punishment; The Gambler; Notes from the Underground. Há um claro paralelo entre a metafísica do “homem do subterrâneo” e os actos de Raskólnikov. Simultaneamente, é possível reconhecer uma certa alusão autobiográfica, a troca de uma carreira promissora no exército por outra, incerta, devido a preocupações literárias lembra a própria vida de Dostoiévski.

                                 Notes from the Underground (2014), adaptação teatral por Gerald Garutti e Harry Lloyd