Da Primavera ao Inverno Árabe consiste numa colectânea
de crónicas publicadas no Diário de Notícias, entre 7 de Fevereiro de
2011 e 28 de Dezembro de 2012, complementadas por um prefácio, uma introdução, um
anexo e uma lista bibliográfica de fontes online. A autora, Maria João
Tomás, é mestre em Sociedades, Culturas e Civilizações Pré-Clássicas pela
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, doutorada em História e Cultura
do Médio Oriente Antigo, pela Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, e falante de árabe, através de um curso no Instituto de Línguas
da Universidade Nova de Lisboa. Adicionalmente, é professora auxiliar no
Departamento de História da Universidade Autónoma de Lisboa, e mantém uma coluna
intitulada “De Outras Margens”, que sai às sextas-feiras, no Diário de
Notícias[1].
Longe de se arvorar como uma análise
aprofundada da questão do Médio Oriente durante a chamada Primavera Árabe, a
presente obra consiste na opinião informada de uma especialista na cultura e
história desta parte do globo à medida que os eventos se iam desenrolando. Isto
mesmo confirma Maria João Tomás no prefácio, ao apontar o desejo de que o livro
conte “as narrativas das revoluções da Primavera Árabe, ao sabor dos
acontecimentos” (TOMÁS, p. 9).
Origens
Partindo deste princípio, João Tomás
caracteriza a Primavera Árabe como o resultado de protestos espontâneos contra
as ditaduras e governos opressores do Médio Oriente, encetados pelas camadas
jovens via Facebook. De facto, João Tomás comprova esta percepção
através de relatos directos de um conjunto de quatro intervenientes neste
processo revolucionário – a líbia Danya Bashir, a egípcia Mona Prince, o
marroquino Aboubakr Jamai, e o tunisino Yassine Ayari –, reunidos em debate,
mediado pela autora, no âmbito da «Festa da Literatura do Norte de África» da
Fundação Calouste Gulbenkian, a 22 de Junho de 2012, transcritos no anexo
“Conversas com activistas, revolucionários, bloguistas, twitters e facebookers”
(TOMÁS, p. 223-38). Assim sendo, alvos de uma vasta rede de espionagem estatal
presencial, a única forma que estes activistas tiveram de organizar os seus
protestos foi através de grupos e chats privados no Facebook, que
dinamizaram o descontentamento geral com os regimes, chegando a uma vasta rede
de contactos através do passa-palavra, que proporcionou o carácter inorgânico,
logo impossível de combater eficazmente porque sem uma liderança identificável,
que obteve os resultados que conhecemos, o derrube de vários dos ditadores mais
opressivos do Médio Oriente.
Reportagem do canal saudita Al Arabiya sobre a Primavera Árabe no Egipto
O catalisador das revoluções terá sido a
“crise do pão de 2010”, por sua vez, fruto de sucessivos maus anos agrícolas
que se repercutiram numa crise mundial de produção de cereais que fez aumentar
exponencialmente o preço do pão, ainda a base da alimentação da maioria da
população nesta região. O aumento generalizado da pobreza de uma vasta camada
da sociedade, em contraste com o enriquecimento ilícito dos seus líderes,
devido aos dividendos resultantes da exploração exclusiva dos recursos naturais
nacionais, foi quanto bastou para levar as pessoas a agir. Ademais, é preciso
ter em conta que vários dos impulsionadores das revoluções eram
maioritariamente jovens adultos com formação universitária, caídos no desespero
do desemprego e da falta de perspectivas de futuro após o fim dos seus cursos.
O exemplo tomado foi o dos protestos no Irão
em 2009, devido às suspeitas de fraude na reeleição de Ahmadinejad. E o
programa encabeçado pelos revolucionários, embora sujeito a idiossincrasias
nacionais de vária ordem, pode ser resumido por aquilo que a revolucionária
iemenita Tawakkol Karman, Prémio Nobel da Paz de 2011, designa como as quatro
etapas da Primavera Árabe: “ [1º] derrubar o ditador e a sua família; [2º]
derrubar as suas redes de nepotismo, como a sua segurança e os militares que
lhe obedecem cegamente; [3º] criar instituições estatais de transição: [4º] dar
legitimidade constitucional e estabelecer um Estado civil moderno e
democrático” (TOMÁS, p. 235).
“O Novo Médio Oriente”
Paralelamente, João Tomás define a Primavera
Árabe como o marco divisório entre o “Velho Médio Oriente”, que ajudou a derrubar,
e o “Novo Médio Oriente”, que está a ajudar a formar, consciente ou
inconscientemente. Se podemos conceber o “Velho Médio Oriente” como tendo sido
orientado pelo movimento político do pan-arabismo, na sequência do
desmoronamento do Império Otomano e da participação árabe na Primeira Guerra
Mundial, isto é, a reunião de todos os países de língua e civilização árabe num
superestado, de cariz nacionalista, secular e laico; o “Novo Médio Oriente”
está a constituir-se nos seus antípodas. Ao pan-arabismo sucede-se o
pan-islamismo, movimento político que pretende unir todos os países de maioria
e tradição muçulmanos numa grande potência de fundamento teocrático, comandada
por um califa, com a Sharia como base legal, e de carácter
antiocidental, anti-iluminista, e antidemocrático. Defendendo que o “verdadeiro
Islão [é] o das primeiras gerações de muçulmanos e que todos deveriam
comportar-se como eles, de forma a viveram a genuinidade da fé islâmica, sem
distorções” (TOMÁS, p. 25), o pan-islamismo é baseado no movimento religioso
wahhabista, surgido no século XVIII, que pretendeu reformar a religião islâmica
sobre estas bases. Por sua vez, Jamal al-Din al-Afghani, o fundador do
pan-islamismo, recuperou a doutrina religiosa wahhabista, no final do século
XIX, e deu-lhe um propósito político.
Duas forças conseguiram rapidamente dominar o
panorama político do Médio Oriente neste período revolucionário: a Irmandade
Muçulmana, e o salafismo. O salafismo pode ser entendido como o braço activo da
teoria pan-islâmica de al-Afghani. Surgindo como um movimento religioso dentro
do islamismo sunita, foi largamente perseguido pelos vários regimes da região,
mas manteve uma organização clandestina bastante eficiente, que lhe permitiu,
não só sobreviver como formar uma rede paralela de ajuda e caridade aos mais
desfavorecidos. Após a queda dos regimes ditatoriais, os salafitas rapidamente
se constituíram como força política e têm uma expressão considerável junto do
eleitorado muçulmano. Por sua vez, a Irmandade Muçulmana foi fundada em 1928
como um movimento político com o intuito de expulsar os britânicos do Egipto,
mas depressa criou raízes pelo mundo muçulmano como entidade política
anticolonial, estabelecendo uma rede internacional de ajuda aos mais
carenciados que não só levou à sua popularização como a um alargamento da sua
base de apoio. A visão política da Irmandade Muçulmana é algo controversa,
partindo da aceitação do Alcorão como o guia para uma vida perfeita e a
consequente visão de que o enquadramento legal da sociedade deverá ser baseado
na Sharia, pretende, ao mesmo tempo, defende-lo no seio de um Estado
democrático, defensor das liberdades e direitos, entre os quais a liberdade de
expressão e reunião. A presença da irmandade é uma constante na política do
Médio Oriente, e “os partidos que criou estão neste momento no poder na Tunísia
e em Marrocos, e preparam-se para ganhar [crónica de 24-12-2011], embora sem
maioria, a Câmara Baixa do Egipto”. Adicionalmente, a irmandade é “influente na
Jordânia, está por detrás do Hamas que controla a Faixa de Gaza e está na
oposição ao regime de Bashar Al-Assad na Síria” (TOMÁS, p. 112). Ambas as
forças políticas parecem apontar para uma teocracia, como modelo a seguir, ou,
no caso da Irmandade Muçulmana, uma democracia de fundamento legal teocrático.
A Questão Síria
Imagens em directo da batalha de Alepo (2014)
Ao longo das restantes crónicas, João Tomás
debate-se com vários temas da actualidade islâmica, como a luta pelos direitos
das mulheres no Iémen. De particular interesse, contudo, destaca-se a sua
abordagem da questão síria. Partindo do enquadramento da revolta na Síria, um
regime autoritário e repressivo, governado por dirigentes corruptos, de
orientação religiosa xiita a governar uma população de maioria sunita, João
Tomás passa a inserir o conflito armado, que brotou da sublevação civil, num
contexto de uma guerra fria latente no Médio Oriente. É possível dividir o
Médio Oriente em dois eixos de influência agregados em torno de duas vertentes
contrastantes do islamismo, o sunismo, encabeçado pela Arábia Saudita e a
Turquia, e o xiismo, liderado pelo Irão, e o Iraque, pós-Segunda Guerra do
Golfo, o Líbano e a Síria de Assad seus aliados. Qualquer desequilíbrio no status
quo é prejudicial e disruptor, levando a que cada conflito na região se
manifeste numa escalada de hostilidades entre ambos os eixo tanto pelo aumento
da sua influência como pela manutenção da sua posição. A Síria é uma peça-chave
no eixo de influência xiita, dado que é a porta de acesso do Irão para o
Mediterrâneo, sendo essencial para as exportações iranianas de petróleo e para
a sua relevância no contexto internacional. Adicionalmente, também a Rússia tem
interesses constituídos na região, mantendo uma importante base naval em
Tartus, na costa síria, o único porto, até à anexação da Crimeia, em 2014, de
águas temperadas da armada russa; bem como “lucrativas explorações de
hidrocarbonetos, de oleodutos e gasodutos” (TOMÁS, p. 176) com o regime de
Assad. Uma vitória dos rebeldes sunitas alteraria o equilíbrio de forças para o
lado da Arábia Saudita, o que beneficiaria decisivamente a influência
norte-americana na região, dada a sua aliança com o regime de Riade. São estes
os motivos pelos quais o conflito sírio não tem fim à vista, e a razão pela
qual uma revolta local contra o despotismo de Assad levou a uma guerra civil de
proporções internacionais.
Considerações Finais
Não obstante o conhecimento de causa dos temas
em questão, os textos de Maria João Tomás denotam uma certa visão orientalista,
tal como foi conceptualizada e criticada por Edward Said[2]. Embora, muito
provavelmente, não seja sua intenção, dado que chega a referir a obra de Edward
numa nota de rodapé, ao descrever, na introdução, o Império Otomano, e o Médio
Oriente, como tendo vivido num perpétuo estado de estagnação nos três a quatro
séculos anteriores à sua dissolução, João Tomás revela um certo preconceito
eurocêntrico e uma visão romantizada do Oriente, imutável, sem história, parado
no tempo, que Said denunciou em Orientalismo. De facto, durante o
Renascimento, um dos picos de desenvolvimento científico europeu, o Império Otomano
estava par a par com a Europa a nível tecnológico e societário. Na verdade, tão
tarde, pelo menos, como 1683 (data do segundo cerco de Viena), em plena
revolução científica iluminista, os otomanos revelaram-se um antagonista à
altura das potências europeias, sendo necessário o esforço conjunto da Coroa de
Habsburgo, do Sacro Império Romano-Germânico, e do reino da Polónia-Lituânia
para os derrotar. A distância do desenvolvimento tecnológico entre a Europa e o
Império Otomano só se tornou expressiva na sequência da Revolução Industrial, evento
que surgiu no Reino Unido e demorou a expandir-se pelas outras potências
europeias. Bem assim, as dissemelhanças crescentes no espectro político entre
os dois blocos civilizacionais só se começaram a adensar com a Revolução
Francesa, sendo os Turcos-otomanos vistos durante séculos na Europa como um exemplo
de tolerância religiosa e de aproveitamento meritocrático dos saberes e
competências de indivíduos nas mais diversas áreas.
Paralelamente, embora Maria João Tomás
mencione os efeitos secundários perniciosos da participação internacional na
Guerra Civil Líbia, considera-a “um caso de sucesso quase imediato” (TOMÁS, p.
164). Isto mesmo apesar do posterior clima de paz armada e actual estado de
guerra civil na Líbia, com o país dividido, em risco de cisão interna, com uma
nova deriva autoritária e um conflito latente entre os vários povos e tribos
locais. Aquilo que João Tomás considera um sucesso, e mesmo apesar de ter
partido dos desejos internos de mudança do povo líbio, rapidamente escalou e
foi, na verdade, o resultado de uma política de prestígio europeu e de uma
ideologia de messianismo político, tal como aponta Todorov em Os Inimigos
Íntimos da Democracia (TODOROV, p. 71-9).
Imagens em directo da morte de Kadhafi (20/10/2011), do The Telegraph
Por fim, as crónicas de João Tomás estão
repletas de formulações deste género: “a Líbia tem todas as condições para
conseguir fazer uma transição democrática com sucesso; resta saber gerir a sua
riqueza natural, não cair na tentação fácil do federalismo como solução para os
conflitos tribais e manter afastada a cobiça estrangeira” (TOMÁS, p. 172). Ou
ainda, o “novo Presidente egípcio […] terá que tirar o país da difícil situação
económica em que se encontra, terá que resistir às pressões de tornar o Egipto
num Estado islâmico ou de voltar à ditadura” (TOMÁS, p. 160). E também, falando
da vitória dos partidos associados à Irmandade Muçulmanas em vários países no
rescaldo da Primavera Árabe, “é necessário que saibam acabar com a corrupção e
que solucionem os graves problemas económicos e sociais que os países […] enfrentam”
(TOMÁS, p. 113).
Podemos resumi-las como opiniões voluntaristas
e, de facto, injustas em relação aos respectivos intervenientes, dado que,
melhor analisadas, parecem destinadas a falhar, ainda antes de as situações
referidas serem postas em prática. Vejamos, a Líbia viveu quarenta e dois anos
em ditadura, é constituída por um conjunto étnico ecléctico que inclui povos
árabes, berberes, tuaregues e tubus, que resulta mais da definição arbitrária
das suas fronteiras durante a colonização italiana do que da sua tradição
histórica. Tudo somado, é difícil, para não dizer quase impossível, que a Líbia
consiga manter uma coesão interna forte, sem recorrer a uma opção federalista,
ou análoga, uma convivência pacífica entre povos e tribos antagónicos e, acima
de tudo, no âmbito de um processo democrático, em relação ao qual a esmagadora
maioria da população é ignorante, e do qual desconfia. Quanto ao afastamento da
cobiça estrangeira, se nem o regime de Kadhafi, cuja imensa fortuna pessoal foi
capaz de o armar de tecnologia militar de ponta e de vastas hostes mercenárias,
conseguiu faze-lo, poderá um governo de transição, saído de uma guerra civil
alcançar tal proeza? Quanto às possibilidades do Egipto, Tunísia, e afins, se
manterem distantes das tentações ditatoriais e teocráticas, a própria autora explica
que esta foi a realidade local durante décadas e que o pan-islamismo é o motor
dos novos partidos saídos da Primavera Árabe, tanto da Irmandade Muçulmana como
dos salafitas. Em suma, é impossível não recordar as conclusões apontadas por
Edward Said em Covering Islam: How the Media and the Experts Determine How
We See the Rest of the World, sobre o problema dos especialistas e a sua
função nos média[3].
Referências
TOMÁS, Maria João (2013) – Da Primavera ao Inverno Árabe. Lisboa: Temas e Debates.
TODOROV,
Tzvetan (2017) – Os Inimigos Íntimos da
Democracia. Lisboa: Edições 70.
[1] http://observare.ual.pt/pt/composicao/21-portugues/observare/nota-curricular/220-maria-joao-tomas
[Consultado em 27-6-2020].
[2] Consultar “Edward Said on
Orientalism”, minuto 0 a 14:16:
https://www.youtube.com/watch?v=fVC8EYd_Z_g&t
[Consultado a 2-7-2020].
[3] Consultar “Edward Said On
Orientalism”, minuto 14:17 a 28:08:
https://www.youtube.com/watch?v=fVC8EYd_Z_g
[Consultado a 2-7-2020].