sexta-feira, 3 de julho de 2020

"Da Primavera ao Inverno Árabe" de Maria João Tomás



Da Primavera ao Inverno Árabe consiste numa colectânea de crónicas publicadas no Diário de Notícias, entre 7 de Fevereiro de 2011 e 28 de Dezembro de 2012, complementadas por um prefácio, uma introdução, um anexo e uma lista bibliográfica de fontes online. A autora, Maria João Tomás, é mestre em Sociedades, Culturas e Civilizações Pré-Clássicas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, doutorada em História e Cultura do Médio Oriente Antigo, pela Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e falante de árabe, através de um curso no Instituto de Línguas da Universidade Nova de Lisboa. Adicionalmente, é professora auxiliar no Departamento de História da Universidade Autónoma de Lisboa, e mantém uma coluna intitulada “De Outras Margens”, que sai às sextas-feiras, no Diário de Notícias[1].

Maria João Tomás

Longe de se arvorar como uma análise aprofundada da questão do Médio Oriente durante a chamada Primavera Árabe, a presente obra consiste na opinião informada de uma especialista na cultura e história desta parte do globo à medida que os eventos se iam desenrolando. Isto mesmo confirma Maria João Tomás no prefácio, ao apontar o desejo de que o livro conte “as narrativas das revoluções da Primavera Árabe, ao sabor dos acontecimentos” (TOMÁS, p. 9).
 
Origens

Partindo deste princípio, João Tomás caracteriza a Primavera Árabe como o resultado de protestos espontâneos contra as ditaduras e governos opressores do Médio Oriente, encetados pelas camadas jovens via Facebook. De facto, João Tomás comprova esta percepção através de relatos directos de um conjunto de quatro intervenientes neste processo revolucionário – a líbia Danya Bashir, a egípcia Mona Prince, o marroquino Aboubakr Jamai, e o tunisino Yassine Ayari –, reunidos em debate, mediado pela autora, no âmbito da «Festa da Literatura do Norte de África» da Fundação Calouste Gulbenkian, a 22 de Junho de 2012, transcritos no anexo “Conversas com activistas, revolucionários, bloguistas, twitters e facebookers” (TOMÁS, p. 223-38). Assim sendo, alvos de uma vasta rede de espionagem estatal presencial, a única forma que estes activistas tiveram de organizar os seus protestos foi através de grupos e chats privados no Facebook, que dinamizaram o descontentamento geral com os regimes, chegando a uma vasta rede de contactos através do passa-palavra, que proporcionou o carácter inorgânico, logo impossível de combater eficazmente porque sem uma liderança identificável, que obteve os resultados que conhecemos, o derrube de vários dos ditadores mais opressivos do Médio Oriente.

Reportagem do canal saudita Al Arabiya sobre a Primavera Árabe no Egipto

O catalisador das revoluções terá sido a “crise do pão de 2010”, por sua vez, fruto de sucessivos maus anos agrícolas que se repercutiram numa crise mundial de produção de cereais que fez aumentar exponencialmente o preço do pão, ainda a base da alimentação da maioria da população nesta região. O aumento generalizado da pobreza de uma vasta camada da sociedade, em contraste com o enriquecimento ilícito dos seus líderes, devido aos dividendos resultantes da exploração exclusiva dos recursos naturais nacionais, foi quanto bastou para levar as pessoas a agir. Ademais, é preciso ter em conta que vários dos impulsionadores das revoluções eram maioritariamente jovens adultos com formação universitária, caídos no desespero do desemprego e da falta de perspectivas de futuro após o fim dos seus cursos.

O exemplo tomado foi o dos protestos no Irão em 2009, devido às suspeitas de fraude na reeleição de Ahmadinejad. E o programa encabeçado pelos revolucionários, embora sujeito a idiossincrasias nacionais de vária ordem, pode ser resumido por aquilo que a revolucionária iemenita Tawakkol Karman, Prémio Nobel da Paz de 2011, designa como as quatro etapas da Primavera Árabe: “ [1º] derrubar o ditador e a sua família; [2º] derrubar as suas redes de nepotismo, como a sua segurança e os militares que lhe obedecem cegamente; [3º] criar instituições estatais de transição: [4º] dar legitimidade constitucional e estabelecer um Estado civil moderno e democrático” (TOMÁS, p. 235).

“O Novo Médio Oriente”
 
Paralelamente, João Tomás define a Primavera Árabe como o marco divisório entre o “Velho Médio Oriente”, que ajudou a derrubar, e o “Novo Médio Oriente”, que está a ajudar a formar, consciente ou inconscientemente. Se podemos conceber o “Velho Médio Oriente” como tendo sido orientado pelo movimento político do pan-arabismo, na sequência do desmoronamento do Império Otomano e da participação árabe na Primeira Guerra Mundial, isto é, a reunião de todos os países de língua e civilização árabe num superestado, de cariz nacionalista, secular e laico; o “Novo Médio Oriente” está a constituir-se nos seus antípodas. Ao pan-arabismo sucede-se o pan-islamismo, movimento político que pretende unir todos os países de maioria e tradição muçulmanos numa grande potência de fundamento teocrático, comandada por um califa, com a Sharia como base legal, e de carácter antiocidental, anti-iluminista, e antidemocrático. Defendendo que o “verdadeiro Islão [é] o das primeiras gerações de muçulmanos e que todos deveriam comportar-se como eles, de forma a viveram a genuinidade da fé islâmica, sem distorções” (TOMÁS, p. 25), o pan-islamismo é baseado no movimento religioso wahhabista, surgido no século XVIII, que pretendeu reformar a religião islâmica sobre estas bases. Por sua vez, Jamal al-Din al-Afghani, o fundador do pan-islamismo, recuperou a doutrina religiosa wahhabista, no final do século XIX, e deu-lhe um propósito político.

Jamal al-Din al-Afghani (1839-1897)

Duas forças conseguiram rapidamente dominar o panorama político do Médio Oriente neste período revolucionário: a Irmandade Muçulmana, e o salafismo. O salafismo pode ser entendido como o braço activo da teoria pan-islâmica de al-Afghani. Surgindo como um movimento religioso dentro do islamismo sunita, foi largamente perseguido pelos vários regimes da região, mas manteve uma organização clandestina bastante eficiente, que lhe permitiu, não só sobreviver como formar uma rede paralela de ajuda e caridade aos mais desfavorecidos. Após a queda dos regimes ditatoriais, os salafitas rapidamente se constituíram como força política e têm uma expressão considerável junto do eleitorado muçulmano. Por sua vez, a Irmandade Muçulmana foi fundada em 1928 como um movimento político com o intuito de expulsar os britânicos do Egipto, mas depressa criou raízes pelo mundo muçulmano como entidade política anticolonial, estabelecendo uma rede internacional de ajuda aos mais carenciados que não só levou à sua popularização como a um alargamento da sua base de apoio. A visão política da Irmandade Muçulmana é algo controversa, partindo da aceitação do Alcorão como o guia para uma vida perfeita e a consequente visão de que o enquadramento legal da sociedade deverá ser baseado na Sharia, pretende, ao mesmo tempo, defende-lo no seio de um Estado democrático, defensor das liberdades e direitos, entre os quais a liberdade de expressão e reunião. A presença da irmandade é uma constante na política do Médio Oriente, e “os partidos que criou estão neste momento no poder na Tunísia e em Marrocos, e preparam-se para ganhar [crónica de 24-12-2011], embora sem maioria, a Câmara Baixa do Egipto”. Adicionalmente, a irmandade é “influente na Jordânia, está por detrás do Hamas que controla a Faixa de Gaza e está na oposição ao regime de Bashar Al-Assad na Síria” (TOMÁS, p. 112). Ambas as forças políticas parecem apontar para uma teocracia, como modelo a seguir, ou, no caso da Irmandade Muçulmana, uma democracia de fundamento legal teocrático.

A Questão Síria

Imagens em directo da batalha de Alepo (2014) 
 
Ao longo das restantes crónicas, João Tomás debate-se com vários temas da actualidade islâmica, como a luta pelos direitos das mulheres no Iémen. De particular interesse, contudo, destaca-se a sua abordagem da questão síria. Partindo do enquadramento da revolta na Síria, um regime autoritário e repressivo, governado por dirigentes corruptos, de orientação religiosa xiita a governar uma população de maioria sunita, João Tomás passa a inserir o conflito armado, que brotou da sublevação civil, num contexto de uma guerra fria latente no Médio Oriente. É possível dividir o Médio Oriente em dois eixos de influência agregados em torno de duas vertentes contrastantes do islamismo, o sunismo, encabeçado pela Arábia Saudita e a Turquia, e o xiismo, liderado pelo Irão, e o Iraque, pós-Segunda Guerra do Golfo, o Líbano e a Síria de Assad seus aliados. Qualquer desequilíbrio no status quo é prejudicial e disruptor, levando a que cada conflito na região se manifeste numa escalada de hostilidades entre ambos os eixo tanto pelo aumento da sua influência como pela manutenção da sua posição. A Síria é uma peça-chave no eixo de influência xiita, dado que é a porta de acesso do Irão para o Mediterrâneo, sendo essencial para as exportações iranianas de petróleo e para a sua relevância no contexto internacional. Adicionalmente, também a Rússia tem interesses constituídos na região, mantendo uma importante base naval em Tartus, na costa síria, o único porto, até à anexação da Crimeia, em 2014, de águas temperadas da armada russa; bem como “lucrativas explorações de hidrocarbonetos, de oleodutos e gasodutos” (TOMÁS, p. 176) com o regime de Assad. Uma vitória dos rebeldes sunitas alteraria o equilíbrio de forças para o lado da Arábia Saudita, o que beneficiaria decisivamente a influência norte-americana na região, dada a sua aliança com o regime de Riade. São estes os motivos pelos quais o conflito sírio não tem fim à vista, e a razão pela qual uma revolta local contra o despotismo de Assad levou a uma guerra civil de proporções internacionais.
 
Considerações Finais

Não obstante o conhecimento de causa dos temas em questão, os textos de Maria João Tomás denotam uma certa visão orientalista, tal como foi conceptualizada e criticada por Edward Said[2]. Embora, muito provavelmente, não seja sua intenção, dado que chega a referir a obra de Edward numa nota de rodapé, ao descrever, na introdução, o Império Otomano, e o Médio Oriente, como tendo vivido num perpétuo estado de estagnação nos três a quatro séculos anteriores à sua dissolução, João Tomás revela um certo preconceito eurocêntrico e uma visão romantizada do Oriente, imutável, sem história, parado no tempo, que Said denunciou em Orientalismo. De facto, durante o Renascimento, um dos picos de desenvolvimento científico europeu, o Império Otomano estava par a par com a Europa a nível tecnológico e societário. Na verdade, tão tarde, pelo menos, como 1683 (data do segundo cerco de Viena), em plena revolução científica iluminista, os otomanos revelaram-se um antagonista à altura das potências europeias, sendo necessário o esforço conjunto da Coroa de Habsburgo, do Sacro Império Romano-Germânico, e do reino da Polónia-Lituânia para os derrotar. A distância do desenvolvimento tecnológico entre a Europa e o Império Otomano só se tornou expressiva na sequência da Revolução Industrial, evento que surgiu no Reino Unido e demorou a expandir-se pelas outras potências europeias. Bem assim, as dissemelhanças crescentes no espectro político entre os dois blocos civilizacionais só se começaram a adensar com a Revolução Francesa, sendo os Turcos-otomanos vistos durante séculos na Europa como um exemplo de tolerância religiosa e de aproveitamento meritocrático dos saberes e competências de indivíduos nas mais diversas áreas.

Paralelamente, embora Maria João Tomás mencione os efeitos secundários perniciosos da participação internacional na Guerra Civil Líbia, considera-a “um caso de sucesso quase imediato” (TOMÁS, p. 164). Isto mesmo apesar do posterior clima de paz armada e actual estado de guerra civil na Líbia, com o país dividido, em risco de cisão interna, com uma nova deriva autoritária e um conflito latente entre os vários povos e tribos locais. Aquilo que João Tomás considera um sucesso, e mesmo apesar de ter partido dos desejos internos de mudança do povo líbio, rapidamente escalou e foi, na verdade, o resultado de uma política de prestígio europeu e de uma ideologia de messianismo político, tal como aponta Todorov em Os Inimigos Íntimos da Democracia (TODOROV, p. 71-9).

 Imagens em directo da morte de Kadhafi (20/10/2011), do The Telegraph

Por fim, as crónicas de João Tomás estão repletas de formulações deste género: “a Líbia tem todas as condições para conseguir fazer uma transição democrática com sucesso; resta saber gerir a sua riqueza natural, não cair na tentação fácil do federalismo como solução para os conflitos tribais e manter afastada a cobiça estrangeira” (TOMÁS, p. 172). Ou ainda, o “novo Presidente egípcio […] terá que tirar o país da difícil situação económica em que se encontra, terá que resistir às pressões de tornar o Egipto num Estado islâmico ou de voltar à ditadura” (TOMÁS, p. 160). E também, falando da vitória dos partidos associados à Irmandade Muçulmanas em vários países no rescaldo da Primavera Árabe, “é necessário que saibam acabar com a corrupção e que solucionem os graves problemas económicos e sociais que os países […] enfrentam” (TOMÁS, p. 113). 

Edward Said (1935-2003)

Podemos resumi-las como opiniões voluntaristas e, de facto, injustas em relação aos respectivos intervenientes, dado que, melhor analisadas, parecem destinadas a falhar, ainda antes de as situações referidas serem postas em prática. Vejamos, a Líbia viveu quarenta e dois anos em ditadura, é constituída por um conjunto étnico ecléctico que inclui povos árabes, berberes, tuaregues e tubus, que resulta mais da definição arbitrária das suas fronteiras durante a colonização italiana do que da sua tradição histórica. Tudo somado, é difícil, para não dizer quase impossível, que a Líbia consiga manter uma coesão interna forte, sem recorrer a uma opção federalista, ou análoga, uma convivência pacífica entre povos e tribos antagónicos e, acima de tudo, no âmbito de um processo democrático, em relação ao qual a esmagadora maioria da população é ignorante, e do qual desconfia. Quanto ao afastamento da cobiça estrangeira, se nem o regime de Kadhafi, cuja imensa fortuna pessoal foi capaz de o armar de tecnologia militar de ponta e de vastas hostes mercenárias, conseguiu faze-lo, poderá um governo de transição, saído de uma guerra civil alcançar tal proeza? Quanto às possibilidades do Egipto, Tunísia, e afins, se manterem distantes das tentações ditatoriais e teocráticas, a própria autora explica que esta foi a realidade local durante décadas e que o pan-islamismo é o motor dos novos partidos saídos da Primavera Árabe, tanto da Irmandade Muçulmana como dos salafitas. Em suma, é impossível não recordar as conclusões apontadas por Edward Said em Covering Islam: How the Media and the Experts Determine How We See the Rest of the World, sobre o problema dos especialistas e a sua função nos média[3].


Referências

TOMÁS, Maria João (2013) Da Primavera ao Inverno Árabe. Lisboa: Temas e Debates. 

TODOROV, Tzvetan (2017) – Os Inimigos Íntimos da Democracia. Lisboa: Edições 70.


[2] Consultar “Edward Said on Orientalism”, minuto 0 a 14:16:
[3] Consultar “Edward Said On Orientalism”, minuto 14:17 a 28:08: