À procura da Enciclopédia da História Universal no
meio das minhas estantes descobri O
Amante de Lady Chatterley, que achava perdido. Recordo-me perfeitamente do
momento da sua leitura, o verão de 2010. Sei-o porque a edição que possuo
pertence a uma colecção lançada pela revista Visão nesse mesmo verão intitulada
Livros Proibidos. Na altura, não creio ter compreendido o significado
intrínseco da obra, apesar do prefácio do autor, era demasiado novo. Hoje, ao
olhar para trás, tentando reordenar as memórias que guardo da sua leitura,
deparo-me com algumas reflexões.
O
Amante de Lady Chatterley escrito por D. H. Lawrence,
polémico escritor britânico de início do século XX, foi publicado em 1928, não
no Reino Unido, mas em Itália. Interdito no seu país, só aparecerá na íntegra
em 1960. É ainda a pudibunda moral vitoriana que domina a Inglaterra e que
tenta fazer de Lawrence um novo Oscar Wilde, de quem se livrou por meio de um
processo judicial infame. Processo esse que serviu para calar a sua filosofia
subversiva, expressamente contida em A
Alma do Homem e o Socialismo, onde – excluindo aquilo que serão as suas
acertadas previsões para o futuro do socialismo – desconstrói a democracia como
sendo a ditadura da maioria, desmascara a hipocrisia da caridade e almeja a uma
sociedade em que não mais seja necessária, deixando de ser o descargo de
consciência de uma classe impunemente exploradora do seu semelhante. Após a
prisão, e depois da escrita do longo desabafo intelectual que é De Profundis e da publicação das agruras
da prisão através de A Balada do Cárcere
de Reading, Wilde morre, alquebrado e atormentado. Contudo, em 1928 já não
reina Vitória, nem o legado da sociedade que encabeçou tem a mesma força,
abalada pela guerra. Lawrence não é preso e é-lhe permitida a publicação, se
bem que censurada, do seu romance.
Em que consiste,
no entanto, a polémica que semelhante obra causou? Trata-se da história de uma
mulher da alta burguesia, Constance (Connie), nobre pelo casamento com Sir
Clifford Chatterley, paraplégico após participação na Primeira Guerra Mundial.
Vivendo uma paixão idílica com o marido nos meses imediatamente anteriores à
guerra, a relação de ambos será seriamente afectada pela mutilação de Clifford,
que o torna sexualmente inválido e o leva a um isolamento auto-imposto com
contornos de paranóia. Depois de um breve caso com um dramaturgo ambiciosamente
vazio, Michaelis, Connie apaixona-se pelo couteiro da sua propriedade, Oliver
Mellors. Com ele irá redescobrir a sua sexualidade latente, e perceber que não
consegue viver unicamente do espírito, chegando à conclusão que o amor não pode
desenvolver-se sem essa componente física. Connie acaba por engravidar e, na
recta final da obra, troca definitivamente Clifford por Mellors.
Três temas
despertaram controvérsia: (1) a admissão do desejo sexual feminino, negado até
ao extremo, ao ponto de se considerar histéricas, durante largas décadas,
mulheres sexualmente frustradas, não raras vezes internadas em hospitais
psiquiátricos; (2) a subversão do sistema muito britânico de classes, através
do romance de um membro da nobreza, do género feminino, pasme-se, com um
proletário; (3) a linguagem sexualmente explícita, sem recurso a eufemismos,
num claro assumir da autoria da obra, sem a protecção do anonimato. À parte
isso, creio que Lawrence absorve muito bem o espírito da sua época. Dilacerada
pela Primeira Guerra Mundial, a guerra para acabar com todas as guerras, Lady Chatterley pinta a morte da Belle Époque, o idílio que teria levado
a Europa rumo à democratização plena e à lenta, mas firme, emancipação feminina
e ao predomínio benéfico da arte na sociedade. Há em Connie algo da inquietação
de Gregor Samsa, na sua busca de um sentido perdido, que a guerra destruiu. Clifford,
por outro lado, ao adquirir a imensa parafernália radiofónica, sintoniza
directamente com o discurso fascista de Hitler, consumido na busca pela sua
virilidade arruinada.
É muito
interessante constatar que a década de 1920 se escandalizasse com semelhante
grito de emancipação feminina. Para a posteridade, no que ao mundo
anglo-saxónico diz respeito, conotada como os “loucos anos 20”, esta será a
década do corte de cabelo à rapaz e dos vestidos ligeiramente abaixo do joelho,
uma revolução na moda feminina, das estrelas de Hollywood assumidamente
promíscuas como Marlene Dietrich, da Paris, Berlim, Londres e Nova Iorque dos
cabarets, do jazz e do foxtrot,
galvanizadores contra a moral conservadora. No fundo, o livro expõe uma realidade
vivida mas impronunciável, assim parece, senão à noite, num bar, após vários
cocktails.
Suspensa pela
Grande Depressão e, logo de seguida, pelo flagelo da Segunda Guerra Mundial, amordaçada
pela neurótica tentativa de retorno à normalidade que foi a década de 1950,
seria preciso esperar até aos anos 60 para finalmente cair o véu da censura que
hipocritamente pairava sobre O Amante de
Lady Chatterley. Só a década de divulgação da nova teorização do movimento
feminista por Simone de Beauvoir para redescobrir esta obra. Não é por acaso que
coincide com os anos de libertação sexual. Lawrence almejou essa libertação,
ocorrida três décadas após a sua morte. Esta obra foi um importante contributo
nesse sentido, e a polémica que a rodeou não a silenciou, serviu, isso sim,
para a popularizar.
Lady Chatterley (2006), realizado por Pascale Ferran