segunda-feira, 28 de maio de 2018

"O Amante de Lady Chatterley" de D.H. Lawrence


À procura da Enciclopédia da História Universal no meio das minhas estantes descobri O Amante de Lady Chatterley, que achava perdido. Recordo-me perfeitamente do momento da sua leitura, o verão de 2010. Sei-o porque a edição que possuo pertence a uma colecção lançada pela revista Visão nesse mesmo verão intitulada Livros Proibidos. Na altura, não creio ter compreendido o significado intrínseco da obra, apesar do prefácio do autor, era demasiado novo. Hoje, ao olhar para trás, tentando reordenar as memórias que guardo da sua leitura, deparo-me com algumas reflexões.

O Amante de Lady Chatterley escrito por D. H. Lawrence, polémico escritor britânico de início do século XX, foi publicado em 1928, não no Reino Unido, mas em Itália. Interdito no seu país, só aparecerá na íntegra em 1960. É ainda a pudibunda moral vitoriana que domina a Inglaterra e que tenta fazer de Lawrence um novo Oscar Wilde, de quem se livrou por meio de um processo judicial infame. Processo esse que serviu para calar a sua filosofia subversiva, expressamente contida em A Alma do Homem e o Socialismo, onde – excluindo aquilo que serão as suas acertadas previsões para o futuro do socialismo – desconstrói a democracia como sendo a ditadura da maioria, desmascara a hipocrisia da caridade e almeja a uma sociedade em que não mais seja necessária, deixando de ser o descargo de consciência de uma classe impunemente exploradora do seu semelhante. Após a prisão, e depois da escrita do longo desabafo intelectual que é De Profundis e da publicação das agruras da prisão através de A Balada do Cárcere de Reading, Wilde morre, alquebrado e atormentado. Contudo, em 1928 já não reina Vitória, nem o legado da sociedade que encabeçou tem a mesma força, abalada pela guerra. Lawrence não é preso e é-lhe permitida a publicação, se bem que censurada, do seu romance.
 
D.H. Lawrence (1885-1930)

Em que consiste, no entanto, a polémica que semelhante obra causou? Trata-se da história de uma mulher da alta burguesia, Constance (Connie), nobre pelo casamento com Sir Clifford Chatterley, paraplégico após participação na Primeira Guerra Mundial. Vivendo uma paixão idílica com o marido nos meses imediatamente anteriores à guerra, a relação de ambos será seriamente afectada pela mutilação de Clifford, que o torna sexualmente inválido e o leva a um isolamento auto-imposto com contornos de paranóia. Depois de um breve caso com um dramaturgo ambiciosamente vazio, Michaelis, Connie apaixona-se pelo couteiro da sua propriedade, Oliver Mellors. Com ele irá redescobrir a sua sexualidade latente, e perceber que não consegue viver unicamente do espírito, chegando à conclusão que o amor não pode desenvolver-se sem essa componente física. Connie acaba por engravidar e, na recta final da obra, troca definitivamente Clifford por Mellors.

Três temas despertaram controvérsia: (1) a admissão do desejo sexual feminino, negado até ao extremo, ao ponto de se considerar histéricas, durante largas décadas, mulheres sexualmente frustradas, não raras vezes internadas em hospitais psiquiátricos; (2) a subversão do sistema muito britânico de classes, através do romance de um membro da nobreza, do género feminino, pasme-se, com um proletário; (3) a linguagem sexualmente explícita, sem recurso a eufemismos, num claro assumir da autoria da obra, sem a protecção do anonimato. À parte isso, creio que Lawrence absorve muito bem o espírito da sua época. Dilacerada pela Primeira Guerra Mundial, a guerra para acabar com todas as guerras, Lady Chatterley pinta a morte da Belle Époque, o idílio que teria levado a Europa rumo à democratização plena e à lenta, mas firme, emancipação feminina e ao predomínio benéfico da arte na sociedade. Há em Connie algo da inquietação de Gregor Samsa, na sua busca de um sentido perdido, que a guerra destruiu. Clifford, por outro lado, ao adquirir a imensa parafernália radiofónica, sintoniza directamente com o discurso fascista de Hitler, consumido na busca pela sua virilidade arruinada. 

É muito interessante constatar que a década de 1920 se escandalizasse com semelhante grito de emancipação feminina. Para a posteridade, no que ao mundo anglo-saxónico diz respeito, conotada como os “loucos anos 20”, esta será a década do corte de cabelo à rapaz e dos vestidos ligeiramente abaixo do joelho, uma revolução na moda feminina, das estrelas de Hollywood assumidamente promíscuas como Marlene Dietrich, da Paris, Berlim, Londres e Nova Iorque dos cabarets, do jazz e do foxtrot, galvanizadores contra a moral conservadora. No fundo, o livro expõe uma realidade vivida mas impronunciável, assim parece, senão à noite, num bar, após vários cocktails.
 
Pintura central do tríptico Metropolis (1927-28), de Otto Dix

Suspensa pela Grande Depressão e, logo de seguida, pelo flagelo da Segunda Guerra Mundial, amordaçada pela neurótica tentativa de retorno à normalidade que foi a década de 1950, seria preciso esperar até aos anos 60 para finalmente cair o véu da censura que hipocritamente pairava sobre O Amante de Lady Chatterley. Só a década de divulgação da nova teorização do movimento feminista por Simone de Beauvoir para redescobrir esta obra. Não é por acaso que coincide com os anos de libertação sexual. Lawrence almejou essa libertação, ocorrida três décadas após a sua morte. Esta obra foi um importante contributo nesse sentido, e a polémica que a rodeou não a silenciou, serviu, isso sim, para a popularizar.

                                             Lady Chatterley (2006), realizado por Pascale Ferran

segunda-feira, 7 de maio de 2018

"Afrodite" de Pierre Louÿs


No terceiro e último volume da grande síntese da história do século XIX, A Era do Império 1875-1914, o historiador Eric Hobsbawm cita como uma evidência do progresso posteriormente quebrado pela Primeira Guerra Mundial o apoio à cultura dado pelas classes dominantes desse período, que permitiu a publicação da obra de Rainer Maria Rilke e de Marcel Proust. Por lapso, ou talvez por puritanismo, esqueceu Pierre Louÿs.
 
Pierre Louÿs (1870-1925)

Figura controversa do simbolismo de língua francesa, elitista por natureza, acreditando que o trabalho de um escritor era escrever para uns quantos eleitos capazes de compreender a sua obra, Louÿs legou-nos algumas das mais belas páginas de fino lirismo de todo o século XIX. Publica em 1894, Les Chansons de Bilitis, traduzido em português com demasiada liberdade poética como O Sexo de Ler de Bilitis, fruto de um extenso trabalho de pesquisa histórico-literária para recriar o mundo grego pré-clássico, do século VI a. C., tendo sido posteriormente adaptado para piano por Claude Debussy. Com Bilitis, uma suposta amante de Safo, vivemos a exaltação do amor em todas as suas vertentes através de cento e cinquenta e oito poemas que narram a sua vida num puro estilo grego, chegando mesmo, durante um curto espaço de tempo, a ser confundidos, como o próprio autor propunha, com a produção original de uma Bilitis que nunca existiu.

Afrodite surge na senda de Les Chansons de Bilitis, em 1896, e catapultou Pierre Louÿs para o sucesso literário do século em França, vendendo um total de 350 mil cópias, sucesso que fez a fortuna da então recém-criada editora Mercure de France. Desta feita, a acção decorre na Alexandria do tempo da rainha Berenice IV (58-55 a. C.), irmã mais velha da grande Cleópatra. Acompanhamos a mais bela mulher da cidade, originária da Galileia, raptada aos 12 anos por mercadores que a instalam no bairro judeu e a estabelecem como prostituta, ou cortesã. Sara, de seu nascimento, é denominada pelos amantes como Crísis ou Criseida, nome que evoca um dos muitos epítetos de Afrodite, dada a sua grande semelhança com a deusa do amor, e a perfeição arcádica de uma beldade de cabelos dourados e pele alva e maviosa. Crísis, prestes a completar vinte anos, amante de centenas de homens, e mulheres, pois o lesbianismo, na Antiguidade helénica, era não só socialmente aceite como muito frequente, nunca amou.
 
Representação do Farol de Alexandria, marco do Egipto Helénico, por H. Thiersch

Quando se cruza com Demétrio, o famoso escultor da Afrodite que povoa o centro do maior templo de Alexandria, e ainda mais famoso amante da rainha, a sua vida mudará para sempre. Cansado do amor exigente de Berenice, enfadado da louca devoção por parte das mulheres da cidade, que o perseguem e assediam a toda a hora, Demétrio contenta-se com a perfeição estética da estátua que criou. Contudo, positivamente encantado com a conjugação da beleza de Crísis com a arte de a saber apresentar e servir-se dela para respirar sensualidade e confiança, vê-se rejeitado nos seus avanços. Desta forma, Demétrio apaixona-se até à servidão por Crísis. Deleitada por prender o ardor do altivo e orgulhoso amante da rainha, Criseida exige-lhe a consumação de três crimes como prova do seu amor: o roubo do espelho de Safo, pertencente a Báquis, uma cortesã rival, a aquisição do pente de marfim de Nitaucrite, antiga rainha do Egipto, pelo assassinato da sua então possuidora, a esposa do Sumo-sacerdote, e a profanação do templo de Afrodite através do furto do colar das Verdadeiras Pérolas de Anadiomene que embelezam a estátua divina, fruto do labor do escultor.

Servil à adoração pela única mulher capaz de lhe suscitar interesse, Demétrio aplica-se na reunião dos três objectos. Tudo consegue sem deixar provas da sua infâmia. Na noite anterior à entrega das jóias, deita-se, extenuado, e sonha – numa descrição de extrema beleza, provavelmente o melhor capítulo da obra – com tudo aquilo que Crísis lhe prometeu: a revelação dos seus encantos físicos, o deslumbramento pelas artes da dança e da sedução, o cantar das poesias de amor judaico e a união sexual com todos os seus requintes. Através deste sonho transcendental, Demétrio liberta-se do feitiço do amor escravizador de Crísis, abdica de reclama-la, de possuí-la, pois já a detém na forma que considera mais absoluta, a estética.
 
Capa da reedição de 1900, ilust. de Édouard Zier

Quando a cidade, em plena celebração das Afrodísias, festividades em honra da deusa do prazer, acorda para a revelação dos crimes hediondos, Crísis, braço activo de Eros nas feridas de amor alheias é por Eros ferida, de uma forma que não previra. Desejara apenas subjugar Demétrio, negar-lhe aquilo que todos os outros teriam ao seu alcance por uma módica quantia, fazendo pagar-se a um preço incomensurável, nunca antes exigido, e acaba, finalmente, vítima de amor, desejando oferecer-lhe aquilo que nunca ofereceu a ninguém, o seu coração.

Todavia, não é já o mesmo Demétrio que encontra. Esbarra contra a dura realidade do ideal estético, de novo vencedor na alma do seu amado. Suplica-lhe que a ame, mas, no seu renovado egoísmo, Demétrio exige-lhe uma condição: deve caminhar pela cidade, nua, envergando apenas as três jóias, causadoras dos crimes que horrorizam Alexandria. É presa e condenada à morte por envenenamento e, só no momento em que deve beber a cicuta suicida, recebe a companhia indiferente de Demétrio, que, logo após o último suspiro, modela o corpo de Crísis na exaltada posição de amor do seu sonho para o modelo da sua derradeira obra-prima, a Essência da Vida.
 
A queda de Crísis, ilust. de Édouard Zier


Esta é uma obra de perfeição estilística absoluta. Nada é escrito ao acaso, tudo tem um propósito. A profundidade literária que a obra contém nas suas meras 224 páginas é a prova de uma laboriosa delapidação artística digna da melhor produção do movimento simbolista. Encontra-se dividida, ao sabor clássico, numa tragédia em cinco actos, resultante do imolar do modelo ateniense afincadamente treinado por Louÿs. A sua escrita não deixa de me recordar Colette, em Chéri. Contudo, o que para mim lhe acrescenta mais valor é a tentativa de Pierre recuperar um tempo anterior à moralidade e cosmogonia cristãs, possibilitando-nos um raro vislumbre sobre o mundo perdido da Antiguidade. Devido à exposição da inerente sensualidade, mais fresca, à flor da pele, da “juventude inebriada da terra”, como define o mundo antigo, tão contrária à moral vitoriana, Pierre Louÿs seria durante décadas considerado um autor maldito, relegado, no final da vida, para a obscuridade. É de autores malditos, no entanto, que tantas vezes provêm as mais nuas verdades.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

"A Ilustre Casa de Ramires" de Eça de Queirós


Devo muito a Eça de Queirós. Os Maias foram o primeiro clássico que li. Foi este livro que despertou o meu afincado interesse pelos clássicos da literatura. Sempre mantive a aclamada obra-prima de Eça como aquela que me era mais cara, entre a sua produção. Contudo, é com espanto que afirmo que A Ilustre Casa de Ramires conseguiu ultrapassar, embora não o significado, pelo menos o deleite que Os Maias me proporcionaram. Apesar do carácter monumental e de fina caricatura de toda a sociedade portuguesa que esta última contém, elevando Eça ao patamar de um Victor Hugo, de um Zola (aliás, seus contemporâneos e influências literárias), a Casa de Ramires é o cúmulo da maturidade literária queirosiana.
 
Eça de Queirós, falecido no mesmo ano da publicação de  
A Ilustre Casa de Ramires (1900)

Estamos perante a vida de Gonçalo Mendes Ramires, último varão da propalada mais antiga família nobre portuguesa, anterior ao reino e à casa real, que sofre de um terrível mal: o medo, físico, que o faz fugir a sete pés à mínima ameaça, psicológico, duvidando de si próprio e das suas capacidades numa insegurança perpétua. Toda a narrativa irá desenvolver-se em torno deste tema numa tentativa complexa da sua resolução.

Porque se sente inferior, pejado de motejos e indiferentismo, Gonçalo não se restringe à figura de rico proprietário, recém-licenciado vivendo pacatamente das suas rendas, quer brilhar, subir a escala social para elevar bem alto a sua despeitada pessoa. O seu meio, entrar na política, fazer-se deputado como rampa de lançamento para voos mais altos. Neste sentido, aceita o convite de um colega da universidade para escrever uma novela histórica, na senda de Herculano, adaptado ao realismo, “A Torre de D. Ramires”. Vasculhando os anais da família, desencanta um seu avô, Tructesindo, que representa a sólida força que almeja possuir. A novela, além de elegíaca, tem como intuito torná-lo conhecido da opinião pública com vista à recolha de prováveis dividendos políticos. Após a morte de Sanches Lucena, deputado pela localidade, vê aí a sua oportunidade. Reata a amizade quebrada, devido a juras de amor defraudadas para com a sua irmã Graça, com André Cavaleiro, governador civil de Oliveira, e recebe, sob o preço aviltante de alcovitar irreflectidamente o reacender do romance adúltero do último com a mana Ramires, o apoio do partido no governo à sua candidatura a deputado. Como consolidar da sua posição pública, ou, talvez, como alternativa ao apoio do “amigo” Cavaleiro, tenta o casamento com a rica viúva Lucena apenas para descobrir que é, de longa data, amante de um seu amigo próximo.

Solar da Torre da Lagariça, inspiração para a Casa de Ramires

Todavia, eis que tudo se altera, quando Gonçalo, perdido na estrada, a caminho de uma visita de angariação de apoio político, se vê, uma vez mais, humilhado, desta feita com laivos de agressão física, por um conhecido rufia da região. É o quebrar das cordas de fino medo que o tolhiam, quebrantavam, havia tantos anos. Finca o pé, defende-se, repele o ataque, e recupera a sua virilidade, alcança a completude por que tanto almejara. É já um homem novo, um digno herdeiro de Ramires, e todo o seu despeito e flagrante sentimento de inferioridade se esvaem. Ganha a eleição, não obstante, já não pode desfrutar daquilo a que tudo sacrificou – esforço literário, honra, a sua e a da irmã, a vida simples, mas independente – porque já não persiste o seu instigador, o desejo de compensar as patentes fraquezas com o reconhecimento público. Parte para África, num assomo de desejada liberdade criadora, e funda um império comercial com base em produtos coloniais, consubstancia a sua essência de Ramires, concretizando o sonho português de finais de oitocentos, o sucesso da expansão colonial africana.

Gustave Flaubert (1821-1880)

A Ilustre Casa de Ramires está para Eça de Queirós como A Educação Sentimental está para Flaubert. Após o sucesso estrondoso de Madame Bovary, Flaubert afirma ”Emma Bovary sou eu”, num rasgo de liberdade criativa, não queria ficar preso a esse sucesso inicial. É neste sentido que surge a tardia e, provavelmente menos conhecida, mas superior, Educação Sentimental. Assim, depois de Os Maias, a obra que sempre estará ligada à sua posteridade, Eça não se fina nesses louros e ultrapassa-se a si mesmo, cria a Casa de Ramires. Com uma estrutura ainda perceptivelmente realista, extravasa os seus limites formais e apresenta-nos algo inesperadamente novo, mais leve, mais optimista. Gonçalo Mendes Ramires já não é o hedonista falhado Carlos Eduardo da Maia. Graça Ramires não é a sublime destroçada Maria Eduarda da Maia. Padre Soeiro, administrador dos Ramires, não é já o sórdido criminoso Padre Amaro. Caíram os rótulos e os personagens tipificados, tudo é mais humano. A Ilustre Casa de Ramires representa, em suma, a reconciliação de Eça de Queirós com Portugal, através do seu personagem principal, Gonçalo, que, no final do romance, é textualmente identificado com esse mesmo Portugal.