quarta-feira, 23 de junho de 2021

"Embalando a Minha Biblioteca" de Alberto Manguel


Quando, no Outono de 2000, Alberto Manguel comprou um antigo presbitério de pedra em Mondion[1], perto da cidade de Châtellerault[2], França, pensou ter finalmente encontrado o seu Paraíso. Localizado no bucólico vale do Loire, numa pequena povoação de pouco mais de uma centena de habitantes, o que chamou a atenção de Manguel foi um celeiro degradado no recinto murado do presbitério rural, espaçoso quanto baste para alojar a sua alexandrina biblioteca de 35 a 40 mil livros. Tal como o próprio explica noutra obra, A Biblioteca à Noite, o celeiro foi edificado a partir de um muro que “pertencera a um dos dois castelos que Tristan L’Hermite, ministro de Luís XI de França e famoso pela sua crueldade, construiu para os filhos por volta de 1433” (Manguel, 2016, p. 19)[3]. Foi neste lugar cheio de história que se fixou e pôde expor todos os livros que reuniu ao longo das suas atribuladas errâncias, naqueles que foram os melhores anos da sua vida.

Todavia, até os idílios mais doces têm um fim. Após quinze anos de completude, Manguel foi obrigado a abandonar a França. As razões da saída forçada nunca foram inteiramente reveladas. Podemos apenas intui-las a partir da parca informação que o autor foi deixando escapar junto da imprensa. Paralelamente ao ofício de escritor, Manguel mantém, há vários anos, uma actividade como cronista em vários jornais e publicações periódicas. Segundo uma entrevista dada ao El País[4], devido às suas opiniões contra o presidente conservador Nicolas Sarkozy (2007-2012), começou a ser alvo de uma verdadeira perseguição burocrática por parte do Estado francês. Seguindo práticas que não envergonhariam os burocratas de O Processo de Kafka, os seus congéneres gauleses passaram a exigir a Manguel documentos comprovativos da compra de cada volume da sua biblioteca. As consequências do incumprimento desta exigência são desconhecidas, mas adivinham-se nas entrelinhas da classificação de Alberto de tal procedimento como “o lado sombrio do cartesianismo”[5].

 

O presbitério e a biblioteca de Mondion


Após obter ajuda de vários amigos na catalogação da sua preciosa colecção, Manguel partiu de Mondion rumo a Nova Iorque com a biblioteca sepultada em caixas. Nessa viagem sem retorno levou consigo a experiência traumática de embalar os seus milhares de livros, que se entrevê nas linhas, “ali parado a fitar a minha biblioteca vazia, senti o peso da ausência num grau quase insuportável” (Manguel, 2018, p. 37)[6], que seria o mote para a obra homónima. Tomando à letra uns versos da Odisseia de Homero, que o próprio cita a dada altura, “os deuses fiaram a destruição para os homens para que também os vindouros tivessem tema para os seus cantos” (Manguel, 2018, p. 39), Manguel metamorfoseará a queda da Arcádia francesa num belo hino aos livros, à literatura e ao pensamento, oferecendo-o ao leitor para a sua apreciação.

A inspiração modelar para esta obra advém do ensaio de Walter Benjamin, Desembalar a Minha Biblioteca: Um Discurso Acerca da Arte de Coleccionar (1931). Neste opúsculo, Benjamin reflecte sobre os livros e, sobretudo, o carácter e a mentalidade dos seus coleccionadores, sejam os amantes de primeiras publicações de uma obra, sejam aqueles que atribuem significado particular e pessoal a determinados tomos e/ou edições específicas. Partindo do ponto de vista inverso, o embalar da sua biblioteca, Manguel expandirá estas reflexões para outros múltiplos pontos. Tal expansão deve ser vista à luz da matriz do pensamento de Manguel, que a define nos seguintes termos:

 

“sou incapaz de pensar em linha recta. Divago. Sinto que sou incapaz de partir de pontos factuais, continuar por uma rede linear de etapas lógicas até chegar a uma resolução satisfatória. Por maior que seja a minha intenção inicial, perco-me pelo caminho. Paro para admirar uma citação, ouvir uma história; deixo-me distrair por questões alheias ao meu propósito, e sou levado por uma torrente de associações. Começo a falar de uma coisa e acabo a falar de outra. Proponho a mim mesmo pensar, por exemplo, acerca de bibliotecas e a imagem de uma biblioteca ordenada conjura na minha mente desordenada associações inesperadas e inopinadas. Penso em «biblioteca» e sou imediatamente dominado pelo paradoxo de que uma biblioteca mina qualquer ordem que possua, com combinações fortuitas e fraternidades acidentais, e que se eu, ao invés de me ater ao convencional caminho alfabético, numérico ou temático que uma biblioteca estabelece para me guiar, pelo contrário me deixar tentar pelas afinidades não-electivas, o meu objecto deixa de ser a biblioteca e passa a ser o feliz caos do mundo que a biblioteca tenciona ordenar. Ariadne transformou o labirinto num caminho claro e simples para Teseu; a minha mente transforma o caminho simples num labirinto” (Manguel, 2018, p. 16).

 

Assim sendo, somos presenteados com uma verdadeira cornucópia de cogitações que polvilham a obra vindas das mais diversas fontes de inspiração e direcção. Neste sentido, e dada a sua ligação seminal a Jorge Luís Borges, Manguel disserta sobre o teor da tradução e sua validade segundo o grande autor argentino, bem como o seu credo literário e as influências da cultura e literatura judaicas na sua obra. Ademais, num ponto inicial, Alberto não resiste a traçar os indícios daquilo que chama a “ansiedade de estarmos rodeados pelas palavras e pelos rostos dos outros” (Manguel, 2018, p. 24), isto é, o fundamento e força motriz das redes sociais, a partir de indícios na obra de autores tão diversos como Petrónio; Du Fu, poeta chinês do século VIII; Al-Mutanabi, poeta árabe do século X; Petrarca; Goethe; Pushkin; ou Verne. De passagem, revela-nos a inspiração para O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson; do Dom Quixote, de Cervantes; de Madame Bovary, de Flaubert; e de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

Posteriormente, Manguel propõe, em primeiro lugar, uma desconstrução da noção, de origem medieval, de que o sofrimento possa ser a base do processo criativo; e em segundo lugar, uma reflexão sobre a incapacidade de completa captação de sentido do mundo, pois – glosando Platão – tudo o que “pomos em palavras são as sombras das sombras, e todos os livros confessam a impossibilidade de apreender inteiramente seja lá o que for que a nossa experiência agarra” (Manguel, 2018, p. 68). Associada a esta impossibilidade está o carácter mutável da leitura ao longo da nossa vida, que cambia a cada nova releitura. Alberto conclui, assim, que a literatura é uma matéria em perene interpretação e reinterpretação. Este facto não pode ser dissociado do teor primacial e definidor da linguagem, da língua no pensamento humano, pois, como relembra, “somos as línguas que falamos” (Manguel, 2018, p. 109). Ora, se a língua nos define, e molda o nosso pensamento, então os dicionários apresentam-se como biografias não só dessa mesma língua como dos seus falantes.

Por fim, Manguel embarca numa pertinente meditação sobre a permeabilidade da literatura no pensamento e na acção do Homem. Através de várias inferências, Alberto identifica a centralidade das narrativas, das histórias nas sociedades humanas como agregadoras e criadoras de sentido da vida e do mundo. Assim sendo, desenvolve o conceito do papel cívico da literatura como seu propósito intrínseco. Para Manguel, a literatura pode funcionar como a memória testemunhal da nossa sociedade – seja da ambição da imortalidade da alma, seja da recordação das atrocidades do passado, ou ainda da lembrança de que há esperança mesmo nas piores situações –, uma espécie de repositório das experiências, sensações, pensamentos, desejos e propósitos humanos, individuais e colectivos. Semelhante função não pode deixar de ser subversiva, na medida em que interpõe a reflexão como contraponto da acção, acto contrário aos desígnios de diversos governos e grandes corporações internacionais. Para este efeito, afigura-se capital o papel da biblioteca nacional de cada país como a sede de tal repositório, que permita estabelecer pontos de referência para “fazer melhores perguntas e imaginar novos modelos sociais mais justos e mais equitativos” (Manguel, 2018, p. 138).

As cogitações podem ser multiformes, contudo, todas partem de um ponto central: a vida de Manguel. Toda a ensaística do autor – veja-se Uma História da Leitura, A Biblioteca à Noite ou Uma História da Curiosidade – é intimista. No entanto, Embalando a minha Biblioteca é, provavelmente, o seu livro mais pessoal. A cada capítulo, Manguel toma sempre como ponto de referência um evento da sua vida, seja o acto condoído de empacotar os livros das estantes de Mondion, seja uma memória de infância ou dos encontros com Borges ou dos momentos deleitosos do idílio francês. Mas também, ainda, a sua longa actividade como leitor em grandes casas editoriais em Paris e Londres, e editor em Milão e no Taiti; o cargo de director da Biblioteca Nacional da Argentina; e, como não podia deixar de ser, as suas vastas leituras. Todos estes eventos servem de alimento à mente em constante ebulição de Manguel, que os transforma em pertinentes e, às vezes, desconcertantes pontos de interrogação. A dada altura, o autor afirma que é possível traçar a biografia de alguém através da sua biblioteca, o seu conteúdo, recorrência de temas e ausências. O mesmo pode ser dito da ensaística de Manguel. As suas obras de não-ficção, particularmente Embalando a Minha Biblioteca, contam a sua biografia literária, intelectual e, tantas vezes, pessoal.

Não obstante, semelhante ausência de pensamento sistemático, mesmo que suportado por referenciais de apoio, pode asseverar-se caótico e aleatório, tal como o autor não tem pejo em confidenciar, como vimos acima. Podemos, num primeiro impulso, justificar este caos com a imensidão das leituras de Alberto, perdoando-lhe porque muito leu, à imagem do perdão de Jesus Cristo a Maria Madalena porque muito amou. Todavia, num momento posterior, é possível equacionar se não é esse o carácter da literatura. Isto é, não é intrínseco à ficção narrativa um conjunto de reflexões elaboradas pelos personagens, com base nas suas vivências e experiências, aparentemente desconexas mas contendo um fio condutor interno que deve ser assimilado e interpretado pelo leitor? Talvez a chave para o entendimento do pensamento associativo de Manguel seja isso mesmo, a literatura, e o seu pensamento seja literário. No fundo, Manguel reconhece um dos princípios básicos do ser humano, a sua imutabilidade, e as suas cogitações não são mais do que o reequacionar e reformular de velhas questões que assombram o Homem pelo menos desde o início da civilização, o que não põe em causa a sua validade.

Na última página do livro, Manguel equaciona qual o futuro da sua biblioteca sepultada em caixas. Hoje, cinco anos passados, sabemos a resposta. Em plena Feira do Livro de Lisboa de 2020, o presidente incumbente do município, Fernando Medina, anunciou ter chegado a acordo com Alberto Manguel para a doação da sua biblioteca à capital portuguesa e consequente instalação da mesma no Palacete dos Marqueses de Pombal. Juntamente com a abertura desta nova biblioteca municipal virá a criação do Centro de Estudos de História da Leitura. A abertura está marcada, em princípio, para o ano de 2022, com o autor argentino como seu director[7]

 

Anúncio do estabelecimento em Lisboa da biblioteca de Manguel

 



[1] Jornal i de 11/4/2018, artigo de José Cabrita Saraiva. Disponível em: https://ionline.sapo.pt/artigo/607857/alberto-manguel-a-arte-de-sepultar-condignamente-uma-biblioteca-?seccao=Mais_i [Consultado a 14-6-2021].

[2] O Jornal Económico de 12/9/2020, artigo de António Freitas de Sousa. Disponível em:

https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/alberto-manguel-doa-os-seus-livros-deixou-de-os-amar-ou-quer-ser-livre-outra-vez-635652 [Consultado a 14-6-2021].

[3] MANGUEL, Alberto (2016) – A Biblioteca à Noite. Trad. de Rita Almeida Simões. Lisboa: Edições Tinta-da-China.

[4] El País de 8/9/2020, artigo de Felipe Sánchez. Disponível em:

https://elpais.com/cultura/2020-09-07/alberto-manguel-dona-a-lisboa-los-40000-libros-de-su-biblioteca.html [Consultado a 14-6-2021].

[5] Diário de Notícias de 7/10/2015, artigo de Ana Sousa Dias. Disponível em:

https://www.dn.pt/artes/desde_adao_e_eva_todos_somos_exilados_refugiados_nomadas_4819921.html [Consultado a 14-6-2021].

[6] MANGUEL, Alberto (2018) – Embalando a Minha Biblioteca. Trad. de Rita Almeida Simões. Lisboa: Edições Tinta-da-China.

[7] Público de 5/9/2020, artigo de Luís Miguel Queirós. Disponível em:

https://www.publico.pt/2020/09/05/culturaipsilon/noticia/alberto-manguel-vai-doar-biblioteca-camara-lisboa-1930434 [Consultado a 14-6-2021].

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