sábado, 9 de março de 2019

"Sonetos Completos" de Antero de Quental


Permitindo a poesia lírica uma multiplicidade de expressões variáveis, ao sabor dos sentimentos, pensamentos e influências exteriores, aconselho os leitores a seguir o mestre Camões e a lerem a obra para as descobrir porque “melhor é experimentá-lo do que julgá-lo” (Os Lusíadas, canto IX). Limitar-me-ei, assim, a fazer o enquadramento da obra e a apontar as principais tendências da expressividade poética de Quental.

A classificação formal da poesia remonta a Aristóteles, que a dividiu, na Poética, em três categorias: épica, dramática e lírica. A épica consiste num texto narrativo em verso, cujas origens remontam ao Épico de Gilgameš bem como à Ilíada e Odisseia. O género dramático está ligado ao teatro em verso, utilizado nas tragédias gregas como a Oresteia ou Rei Édipo bem como na maior parte das peças de Shakespeare. A lírica prende-se com a expressão dos sentimentos e emoções pessoais. Neste sentido, o soneto é uma das fórmulas dessa expressão em verso, com origem na Itália medieval, sendo Petrarca, embora não o criador, o responsável pelo refinamento da sua estrutura num conjunto de duas quadras seguidas de dois tercetos. Sá de Miranda introduziu o soneto no panorama lírico português, e Camões aprimorou-o. É este o contexto formal onde se inserem os Sonetos Completos, assumindo o próprio Antero de Quental a “influência dos nossos poetas do século XVI [...] especialmente os [poemas] de Camões, tornaram-se para mim como um Evangelho do sentimento” (carta a Carolina Michaëlis de 7/8/1885).
 
Antero de Quental (1842-1891)
Os Sonetos Completos foram publicados em 1886 reunindo as poesias de Antero dispersas por dois livros, Odes Modernas e Primaveras Românticas, vários jornais e outra tanta correspondência privada. A abrir a obra, um prefácio de Oliveira Martins, amigo íntimo do autor, que nos traça uma genealogia do pensamento anteriano, fundamentando o rigor de reflexão e as suas preocupações sociais com as influências de Michelet, o grande historiador francês cuja visão suplantava precocemente o positivismo, Lamartine, o instrutor da Segunda República Francesa, e Proudhon, o filósofo anarquista preocupado com as questões sociais. Oliveira Martins conceptualiza ainda Antero como um idealista cuja visão acutilante lhe permitia estar mais atento ao sofrimento e à desgraça humanas, refutando o rótulo de um poeta do lúgubre e do desânimo, que vinha sendo aplicado ao amigo. Seguem-se cinco poemas, que Eduardo Lourenço classifica como “os grandes poemas agónicos” (A Noite Intacta, p.78), produzidos em momentos de desespero interior, incluídos por Martins após o prefácio dado possuir as únicas cópias dos originais, destruídos por Quental.
 
Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894)
A obra contém cento e nove sonetos divididos cronologicamente, segundo indicação do autor, em seis períodos: 1860-62, 1862-66, 1864-74, 1874-80, 1880-84. Com esta divisão, Antero pretendia que o livro funcionasse como uma autobiografia, indicativa da sua evolução, não só sentimental, sobretudo intelectual e espiritual. Deste modo, partimos de inspirações do movimento romântico para uma posterior ruptura e adesão definitiva ao realismo, indo beber a Baudelaire e, por interposta pessoa, a Edgar Allan Poe, a inspiração para a sua imagética tantas vezes fúnebre e pontualmente macabra. Pelo meio, denotamos uma progressiva preocupação com o social, com raízes no ingresso, após terminar o curso de Direito, em Coimbra (1866), na Imprensa Nacional, como tipógrafo, e na sua estadia em Paris, onde toma contacto com o proletariado local. É relevante o seu papel de polemista na Questão Coimbrã (1865), contra António Feliciano de Castilho e os ultrarromânticos, acusando-lhes a vacuidade de conteúdo revestida pela forma exacerbada dos cânones românticos. Bem assim, a sua posição cimeira nas conferências do Casino Lisbonense (1871) que introduziram o realismo como novo movimento artístico em Portugal e consagraram a Geração de 70. Todas estas questões da sua vida política e artística influíram na lírica que compôs, denotando-se nos sonetos dos respectivos períodos temporais.
 
António Feliciano de Castilho (1800-1875)
Todavia, coexistindo com estas múltiplas influências está, talvez, o tema central de toda a lírica anteriana, a metafísica, as suas dúvidas e angústias na constante demanda pelo sentido da vida e a sua relação conflituosa com Deus, ou a ideia do divino, que poderá justificar essa mesma vida. Debatendo-se entre a crise de fé, provocada pela pungente consciência das injustiças no mundo, e a descrença angustiante do vazio da existência, Antero encontra sentido no vácuo ao descobrir o budismo zen. Tema de muitos dos seus sonetos finais, o zen permitiu a Quental libertar-se do medo da morte e do absurdo do vácuo, o vazio deixa de ser o zero absoluto para poder ser o todo possível, a vida é nada, logo pode ser tudo. Só nos despojando de todos os medos, angústias e bagagem supérflua nos podemos aperceber que o verdadeiro sentido da vida é deixa-la fluir, devemos ser como a água, que a tudo se adapta, e a tudo preenche sempre sem perder a consistência, isto é, mantendo a firme consciência de nós mesmos e do mundo senciente.

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