Permitindo a
poesia lírica uma multiplicidade de expressões variáveis, ao sabor dos
sentimentos, pensamentos e influências exteriores, aconselho os leitores a
seguir o mestre Camões e a lerem a obra para as descobrir porque “melhor é
experimentá-lo do que julgá-lo” (Os
Lusíadas, canto IX). Limitar-me-ei, assim, a fazer o enquadramento da obra
e a apontar as principais tendências da expressividade poética de Quental.
A classificação formal da poesia remonta a Aristóteles, que a dividiu,
na Poética, em três categorias: épica, dramática e lírica. A épica
consiste num texto narrativo em verso, cujas origens remontam ao Épico de Gilgameš
bem como à Ilíada e Odisseia. O
género dramático está ligado ao teatro em verso, utilizado nas tragédias gregas
como a Oresteia ou Rei Édipo bem como na maior parte das
peças de Shakespeare. A lírica prende-se com a expressão dos sentimentos e
emoções pessoais. Neste sentido, o soneto é uma das fórmulas dessa expressão em
verso, com origem na Itália medieval, sendo Petrarca, embora não o criador, o
responsável pelo refinamento da sua estrutura num conjunto de duas quadras
seguidas de dois tercetos. Sá de Miranda introduziu o soneto no panorama lírico
português, e Camões aprimorou-o. É este o contexto formal onde se inserem os Sonetos Completos, assumindo o próprio
Antero de Quental a “influência dos nossos poetas do século XVI [...]
especialmente os [poemas] de Camões, tornaram-se para mim como um Evangelho do
sentimento” (carta a Carolina Michaëlis de 7/8/1885).
Os Sonetos Completos foram publicados
em 1886 reunindo as poesias de Antero dispersas por dois livros, Odes
Modernas e Primaveras Românticas, vários jornais e outra tanta
correspondência privada. A abrir a obra, um prefácio de Oliveira Martins, amigo
íntimo do autor, que nos traça uma genealogia do pensamento anteriano, fundamentando
o rigor de reflexão e as suas preocupações sociais com as influências de Michelet,
o grande historiador francês cuja visão suplantava precocemente o positivismo,
Lamartine, o instrutor da Segunda República Francesa, e Proudhon, o filósofo anarquista
preocupado com as questões sociais. Oliveira Martins conceptualiza ainda Antero
como um idealista cuja visão acutilante lhe permitia estar mais atento ao
sofrimento e à desgraça humanas, refutando o rótulo de um poeta do lúgubre e do
desânimo, que vinha sendo aplicado ao amigo. Seguem-se cinco poemas, que
Eduardo Lourenço classifica como “os grandes poemas agónicos” (A Noite
Intacta, p.78), produzidos em momentos de desespero interior, incluídos por
Martins após o prefácio dado possuir as únicas cópias dos originais, destruídos
por Quental.
A obra contém cento e nove sonetos divididos
cronologicamente, segundo indicação do autor, em seis períodos: 1860-62,
1862-66, 1864-74, 1874-80, 1880-84. Com esta divisão, Antero pretendia que o
livro funcionasse como uma autobiografia, indicativa da sua evolução, não só
sentimental, sobretudo intelectual e espiritual. Deste modo, partimos de
inspirações do movimento romântico para uma posterior ruptura e adesão
definitiva ao realismo, indo beber a Baudelaire e, por interposta pessoa, a
Edgar Allan Poe, a inspiração para a sua imagética tantas vezes fúnebre e
pontualmente macabra. Pelo meio, denotamos uma progressiva preocupação com o
social, com raízes no ingresso, após terminar o curso de Direito, em Coimbra
(1866), na Imprensa Nacional, como tipógrafo, e na sua estadia em Paris, onde
toma contacto com o proletariado local. É relevante o seu papel de polemista na
Questão Coimbrã (1865), contra António Feliciano de Castilho e os
ultrarromânticos, acusando-lhes a vacuidade de conteúdo revestida pela forma exacerbada
dos cânones românticos. Bem assim, a sua posição cimeira nas conferências do
Casino Lisbonense (1871) que introduziram o realismo como novo movimento
artístico em Portugal e consagraram a Geração de 70. Todas estas questões da
sua vida política e artística influíram na lírica que compôs, denotando-se nos
sonetos dos respectivos períodos temporais.
Todavia, coexistindo com estas múltiplas
influências está, talvez, o tema central de toda a lírica anteriana, a
metafísica, as suas dúvidas e angústias na constante demanda pelo sentido da
vida e a sua relação conflituosa com Deus, ou a ideia do divino, que poderá
justificar essa mesma vida. Debatendo-se entre a crise de fé, provocada pela
pungente consciência das injustiças no mundo, e a descrença angustiante do
vazio da existência, Antero encontra sentido no vácuo ao descobrir o budismo
zen. Tema de muitos dos seus sonetos finais, o zen permitiu a Quental
libertar-se do medo da morte e do absurdo do vácuo, o vazio deixa de ser o zero
absoluto para poder ser o todo possível, a vida é nada, logo pode ser tudo. Só
nos despojando de todos os medos, angústias e bagagem supérflua nos podemos
aperceber que o verdadeiro sentido da vida é deixa-la fluir, devemos ser como a
água, que a tudo se adapta, e a tudo preenche sempre sem perder a consistência,
isto é, mantendo a firme consciência de nós mesmos e do mundo senciente.
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