Em início de
carreira, Fiódor Dostoiévski dedicou-se ao social, através da sua aclamada
estreia Gente Pobre, e ao
psicológico, com O Duplo. Depois do
exílio na Sibéria, que o marcou profundamente, não só na saúde como na sua
mundividência, e deu origem aos Cadernos
da Casa Morta, a primeira descrição publicada das prisões russas, e a Humilhados e Ofendidos, alusivo das
preocupações sociais do seu primeiro romance, Dostoiévski enveredou pelo
movimento que o iria eternizar, o existencialismo. A Voz Subterrânea – mais conhecida como Memórias (ou Notas) do Subterrâneo – é fruto dessa segunda
fase literária.
Estruturalmente,
a obra encontra-se dividida em duas partes que, embora estilisticamente
distintas, se complementam para criar um quadro muito vivo de alienação
auto-imposta. A primeira tem o formato de um ensaio, no qual o narrador, que
nunca revela a identidade para além da idade, quarenta anos, expõe a sua
metafísica do subterrâneo. Antigo funcionário, de patente inferior, da
administração imperial russa, o narrador, chamemos-lhe “homem do subterrâneo”,
mantém-se, entretanto, através de uma pequena herança, abdicando do serviço
civil e de todas as obrigações sociais, é uma metafísica da inércia e da
reclusão contemplativa, negativa e rancorosa, que nos propõe. Começando por divagar
sobre a necessidade da dor e do sofrimento como princípios da liberdade, o
“homem do subterrâneo” evolui para criticar o determinismo, especialmente o
utopismo da moral e das acções humanas ditadas pela lógica, presente em O Que Fazer?, de Tchernichévski. Em
contrapartida ao problema de matemática dois mais dois igual a quatro, a forma
a que reduz esse utopismo, o “homem do subterrâneo” advoga que, muitas vezes,
ele, e uma certa maioria das pessoas, entendem essa soma como três, ou cinco,
numa clara alusão à irracionalidade inerente ao género humano. Partindo dessa
irracionalidade, o narrador expõe a sua defesa do livre arbítrio, pese embora
de forma negativa, dando o seu próprio exemplo de vida, contado na segunda
parte da obra.
Intitulada “A
Propósito da Neve Derretida”, e encabeçada pelo excerto de um poema de
Niekrássov, que ajudou Dostoiévski a publicar a sua primeira obra, esta segunda
metade recua dezasseis anos até à juventude do narrador. Após abandonar uma
carreira promissora no exército, o “homem do subterrâneo” obtém recomendação
para trabalhar numa repartição da administração central do Estado, na capital,
onde tem mais liberdade para se dedicar à leitura indolente e à sua misantropia paranóica. Não convive com praticamente ninguém no trabalho, a não ser,
ocasionalmente, o chefe, Anton Antônitch, a quem pede dinheiro emprestado. Apesar
da sua aversão ao convívio humano, é com vergonha e remorso que o “homem do
subterrâneo” se vê forçado a admitir que não consegue evitar vagabundear pela
noite de São Petersburgo, em busca de prazer, e amiúde frequentar a casa do
único amigo, Siemiônov. Numa dessas visitas, reencontra velhos colegas de
escola que organizavam um jantar de despedida ao antigo rival da adolescência
do narrador, Zvierkov, prestes a partir para um proveitoso posto militar no
Cáucaso. Despeitado por ser colocado à margem da combinação, o “homem do subterrâneo”
faz-se convidado apenas para mostrar o seu desprezo pelo próspero oficial,
endividando-se para poder estar presente e embebedando-se ao ponto do ridículo.
Não contente com isso, segue os “amigos” até ao bordel que habitualmente
frequentam, pronto a desafiar Zvierkov e companhia para um duelo e arruinar
definitivamente a sua vida. Por sorte, em vez deles cruza-se antes com Lisa,
recente no estabelecimento. Depois de um encontro íntimo fugaz, dá-se o ponto
central da narrativa: a discussão metafísica entre o “homem do subterrâneo” e
Lisa. Aqui, a última representa o ponto de vista de Tchernichévski, de uma vida
logicamente subordinada a um princípio utópico, no caso, o sucesso na profissão
de prostituta ao ponto de conseguir abandona-la em prol de uma vida socialmente
aceitável, ao lado de um salvador que a encontra, protege e resgata. Enquanto
isso, o “homem do subterrâneo” desconstrói essa idealização romântica
confrontando Lisa com a realidade dos factos, a posição periclitante no bordel,
acumulando dívidas à matrona, consumindo os seus melhores anos numa vida
desgastante e tendo como fim último a sarjeta, a abjecção pública e a penúria,
assim que a sua beleza se desvanecer. A princípio, Lisa toma-o como o seu
suposto salvador, aquele que a alerta para os perigos da sua situação, e
procura-o em casa apenas para constatar o extremo egoísmo misantrópico do
“homem do subterrâneo”, desfazendo-lhe as últimas esperanças.
A
Voz Subterrânea (1864) é considerada uma das primeiras
obras existencialistas da história, sem dúvida o ponto de viragem dos romances
sociais e psicológicos de Dostoiévski para os de carácter existencial.
Precedendo em apenas dois anos a publicação de Crime e Castigo (1866), não é por acaso que tem sido vulgarmente
publicada em conjunto com esta, como na edição da Chancellor Press de 1994, Crime and Punishment; The Gambler; Notes
from the Underground. Há um claro paralelo entre a metafísica do “homem do
subterrâneo” e os actos de Raskólnikov. Simultaneamente, é possível reconhecer
uma certa alusão autobiográfica, a troca de uma carreira promissora no exército
por outra, incerta, devido a preocupações literárias lembra a própria vida de
Dostoiévski.
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