sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

"A Voz Subterrânea (Memórias do Subterrâneo)" de Fiódor Dostoiévski



Em início de carreira, Fiódor Dostoiévski dedicou-se ao social, através da sua aclamada estreia Gente Pobre, e ao psicológico, com O Duplo. Depois do exílio na Sibéria, que o marcou profundamente, não só na saúde como na sua mundividência, e deu origem aos Cadernos da Casa Morta, a primeira descrição publicada das prisões russas, e a Humilhados e Ofendidos, alusivo das preocupações sociais do seu primeiro romance, Dostoiévski enveredou pelo movimento que o iria eternizar, o existencialismo. A Voz Subterrânea – mais conhecida como Memórias (ou Notas) do Subterrâneo – é fruto dessa segunda fase literária.
 
Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Estruturalmente, a obra encontra-se dividida em duas partes que, embora estilisticamente distintas, se complementam para criar um quadro muito vivo de alienação auto-imposta. A primeira tem o formato de um ensaio, no qual o narrador, que nunca revela a identidade para além da idade, quarenta anos, expõe a sua metafísica do subterrâneo. Antigo funcionário, de patente inferior, da administração imperial russa, o narrador, chamemos-lhe “homem do subterrâneo”, mantém-se, entretanto, através de uma pequena herança, abdicando do serviço civil e de todas as obrigações sociais, é uma metafísica da inércia e da reclusão contemplativa, negativa e rancorosa, que nos propõe. Começando por divagar sobre a necessidade da dor e do sofrimento como princípios da liberdade, o “homem do subterrâneo” evolui para criticar o determinismo, especialmente o utopismo da moral e das acções humanas ditadas pela lógica, presente em O Que Fazer?, de Tchernichévski. Em contrapartida ao problema de matemática dois mais dois igual a quatro, a forma a que reduz esse utopismo, o “homem do subterrâneo” advoga que, muitas vezes, ele, e uma certa maioria das pessoas, entendem essa soma como três, ou cinco, numa clara alusão à irracionalidade inerente ao género humano. Partindo dessa irracionalidade, o narrador expõe a sua defesa do livre arbítrio, pese embora de forma negativa, dando o seu próprio exemplo de vida, contado na segunda parte da obra.
 
Edição portuguesa de O Que Fazer? (2017)

Intitulada “A Propósito da Neve Derretida”, e encabeçada pelo excerto de um poema de Niekrássov, que ajudou Dostoiévski a publicar a sua primeira obra, esta segunda metade recua dezasseis anos até à juventude do narrador. Após abandonar uma carreira promissora no exército, o “homem do subterrâneo” obtém recomendação para trabalhar numa repartição da administração central do Estado, na capital, onde tem mais liberdade para se dedicar à leitura indolente e à sua misantropia paranóica. Não convive com praticamente ninguém no trabalho, a não ser, ocasionalmente, o chefe, Anton Antônitch, a quem pede dinheiro emprestado. Apesar da sua aversão ao convívio humano, é com vergonha e remorso que o “homem do subterrâneo” se vê forçado a admitir que não consegue evitar vagabundear pela noite de São Petersburgo, em busca de prazer, e amiúde frequentar a casa do único amigo, Siemiônov. Numa dessas visitas, reencontra velhos colegas de escola que organizavam um jantar de despedida ao antigo rival da adolescência do narrador, Zvierkov, prestes a partir para um proveitoso posto militar no Cáucaso. Despeitado por ser colocado à margem da combinação, o “homem do subterrâneo” faz-se convidado apenas para mostrar o seu desprezo pelo próspero oficial, endividando-se para poder estar presente e embebedando-se ao ponto do ridículo. Não contente com isso, segue os “amigos” até ao bordel que habitualmente frequentam, pronto a desafiar Zvierkov e companhia para um duelo e arruinar definitivamente a sua vida. Por sorte, em vez deles cruza-se antes com Lisa, recente no estabelecimento. Depois de um encontro íntimo fugaz, dá-se o ponto central da narrativa: a discussão metafísica entre o “homem do subterrâneo” e Lisa. Aqui, a última representa o ponto de vista de Tchernichévski, de uma vida logicamente subordinada a um princípio utópico, no caso, o sucesso na profissão de prostituta ao ponto de conseguir abandona-la em prol de uma vida socialmente aceitável, ao lado de um salvador que a encontra, protege e resgata. Enquanto isso, o “homem do subterrâneo” desconstrói essa idealização romântica confrontando Lisa com a realidade dos factos, a posição periclitante no bordel, acumulando dívidas à matrona, consumindo os seus melhores anos numa vida desgastante e tendo como fim último a sarjeta, a abjecção pública e a penúria, assim que a sua beleza se desvanecer. A princípio, Lisa toma-o como o seu suposto salvador, aquele que a alerta para os perigos da sua situação, e procura-o em casa apenas para constatar o extremo egoísmo misantrópico do “homem do subterrâneo”, desfazendo-lhe as últimas esperanças.
 
Nikolai Tchernichévski (1828-1889)

A Voz Subterrânea (1864) é considerada uma das primeiras obras existencialistas da história, sem dúvida o ponto de viragem dos romances sociais e psicológicos de Dostoiévski para os de carácter existencial. Precedendo em apenas dois anos a publicação de Crime e Castigo (1866), não é por acaso que tem sido vulgarmente publicada em conjunto com esta, como na edição da Chancellor Press de 1994, Crime and Punishment; The Gambler; Notes from the Underground. Há um claro paralelo entre a metafísica do “homem do subterrâneo” e os actos de Raskólnikov. Simultaneamente, é possível reconhecer uma certa alusão autobiográfica, a troca de uma carreira promissora no exército por outra, incerta, devido a preocupações literárias lembra a própria vida de Dostoiévski.

                                 Notes from the Underground (2014), adaptação teatral por Gerald Garutti e Harry Lloyd

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