segunda-feira, 7 de maio de 2018

"Afrodite" de Pierre Louÿs


No terceiro e último volume da grande síntese da história do século XIX, A Era do Império 1875-1914, o historiador Eric Hobsbawm cita como uma evidência do progresso posteriormente quebrado pela Primeira Guerra Mundial o apoio à cultura dado pelas classes dominantes desse período, que permitiu a publicação da obra de Rainer Maria Rilke e de Marcel Proust. Por lapso, ou talvez por puritanismo, esqueceu Pierre Louÿs.
 
Pierre Louÿs (1870-1925)

Figura controversa do simbolismo de língua francesa, elitista por natureza, acreditando que o trabalho de um escritor era escrever para uns quantos eleitos capazes de compreender a sua obra, Louÿs legou-nos algumas das mais belas páginas de fino lirismo de todo o século XIX. Publica em 1894, Les Chansons de Bilitis, traduzido em português com demasiada liberdade poética como O Sexo de Ler de Bilitis, fruto de um extenso trabalho de pesquisa histórico-literária para recriar o mundo grego pré-clássico, do século VI a. C., tendo sido posteriormente adaptado para piano por Claude Debussy. Com Bilitis, uma suposta amante de Safo, vivemos a exaltação do amor em todas as suas vertentes através de cento e cinquenta e oito poemas que narram a sua vida num puro estilo grego, chegando mesmo, durante um curto espaço de tempo, a ser confundidos, como o próprio autor propunha, com a produção original de uma Bilitis que nunca existiu.

Afrodite surge na senda de Les Chansons de Bilitis, em 1896, e catapultou Pierre Louÿs para o sucesso literário do século em França, vendendo um total de 350 mil cópias, sucesso que fez a fortuna da então recém-criada editora Mercure de France. Desta feita, a acção decorre na Alexandria do tempo da rainha Berenice IV (58-55 a. C.), irmã mais velha da grande Cleópatra. Acompanhamos a mais bela mulher da cidade, originária da Galileia, raptada aos 12 anos por mercadores que a instalam no bairro judeu e a estabelecem como prostituta, ou cortesã. Sara, de seu nascimento, é denominada pelos amantes como Crísis ou Criseida, nome que evoca um dos muitos epítetos de Afrodite, dada a sua grande semelhança com a deusa do amor, e a perfeição arcádica de uma beldade de cabelos dourados e pele alva e maviosa. Crísis, prestes a completar vinte anos, amante de centenas de homens, e mulheres, pois o lesbianismo, na Antiguidade helénica, era não só socialmente aceite como muito frequente, nunca amou.
 
Representação do Farol de Alexandria, marco do Egipto Helénico, por H. Thiersch

Quando se cruza com Demétrio, o famoso escultor da Afrodite que povoa o centro do maior templo de Alexandria, e ainda mais famoso amante da rainha, a sua vida mudará para sempre. Cansado do amor exigente de Berenice, enfadado da louca devoção por parte das mulheres da cidade, que o perseguem e assediam a toda a hora, Demétrio contenta-se com a perfeição estética da estátua que criou. Contudo, positivamente encantado com a conjugação da beleza de Crísis com a arte de a saber apresentar e servir-se dela para respirar sensualidade e confiança, vê-se rejeitado nos seus avanços. Desta forma, Demétrio apaixona-se até à servidão por Crísis. Deleitada por prender o ardor do altivo e orgulhoso amante da rainha, Criseida exige-lhe a consumação de três crimes como prova do seu amor: o roubo do espelho de Safo, pertencente a Báquis, uma cortesã rival, a aquisição do pente de marfim de Nitaucrite, antiga rainha do Egipto, pelo assassinato da sua então possuidora, a esposa do Sumo-sacerdote, e a profanação do templo de Afrodite através do furto do colar das Verdadeiras Pérolas de Anadiomene que embelezam a estátua divina, fruto do labor do escultor.

Servil à adoração pela única mulher capaz de lhe suscitar interesse, Demétrio aplica-se na reunião dos três objectos. Tudo consegue sem deixar provas da sua infâmia. Na noite anterior à entrega das jóias, deita-se, extenuado, e sonha – numa descrição de extrema beleza, provavelmente o melhor capítulo da obra – com tudo aquilo que Crísis lhe prometeu: a revelação dos seus encantos físicos, o deslumbramento pelas artes da dança e da sedução, o cantar das poesias de amor judaico e a união sexual com todos os seus requintes. Através deste sonho transcendental, Demétrio liberta-se do feitiço do amor escravizador de Crísis, abdica de reclama-la, de possuí-la, pois já a detém na forma que considera mais absoluta, a estética.
 
Capa da reedição de 1900, ilust. de Édouard Zier

Quando a cidade, em plena celebração das Afrodísias, festividades em honra da deusa do prazer, acorda para a revelação dos crimes hediondos, Crísis, braço activo de Eros nas feridas de amor alheias é por Eros ferida, de uma forma que não previra. Desejara apenas subjugar Demétrio, negar-lhe aquilo que todos os outros teriam ao seu alcance por uma módica quantia, fazendo pagar-se a um preço incomensurável, nunca antes exigido, e acaba, finalmente, vítima de amor, desejando oferecer-lhe aquilo que nunca ofereceu a ninguém, o seu coração.

Todavia, não é já o mesmo Demétrio que encontra. Esbarra contra a dura realidade do ideal estético, de novo vencedor na alma do seu amado. Suplica-lhe que a ame, mas, no seu renovado egoísmo, Demétrio exige-lhe uma condição: deve caminhar pela cidade, nua, envergando apenas as três jóias, causadoras dos crimes que horrorizam Alexandria. É presa e condenada à morte por envenenamento e, só no momento em que deve beber a cicuta suicida, recebe a companhia indiferente de Demétrio, que, logo após o último suspiro, modela o corpo de Crísis na exaltada posição de amor do seu sonho para o modelo da sua derradeira obra-prima, a Essência da Vida.
 
A queda de Crísis, ilust. de Édouard Zier


Esta é uma obra de perfeição estilística absoluta. Nada é escrito ao acaso, tudo tem um propósito. A profundidade literária que a obra contém nas suas meras 224 páginas é a prova de uma laboriosa delapidação artística digna da melhor produção do movimento simbolista. Encontra-se dividida, ao sabor clássico, numa tragédia em cinco actos, resultante do imolar do modelo ateniense afincadamente treinado por Louÿs. A sua escrita não deixa de me recordar Colette, em Chéri. Contudo, o que para mim lhe acrescenta mais valor é a tentativa de Pierre recuperar um tempo anterior à moralidade e cosmogonia cristãs, possibilitando-nos um raro vislumbre sobre o mundo perdido da Antiguidade. Devido à exposição da inerente sensualidade, mais fresca, à flor da pele, da “juventude inebriada da terra”, como define o mundo antigo, tão contrária à moral vitoriana, Pierre Louÿs seria durante décadas considerado um autor maldito, relegado, no final da vida, para a obscuridade. É de autores malditos, no entanto, que tantas vezes provêm as mais nuas verdades.

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