No terceiro e
último volume da grande síntese da história do século XIX, A Era do Império 1875-1914, o historiador Eric Hobsbawm cita como
uma evidência do progresso posteriormente quebrado pela Primeira Guerra Mundial o
apoio à cultura dado pelas classes dominantes desse período, que permitiu a
publicação da obra de Rainer Maria Rilke e de Marcel Proust. Por lapso, ou
talvez por puritanismo, esqueceu Pierre Louÿs.
Figura
controversa do simbolismo de língua francesa, elitista por natureza,
acreditando que o trabalho de um escritor era escrever para uns quantos eleitos
capazes de compreender a sua obra, Louÿs legou-nos algumas das mais belas
páginas de fino lirismo de todo o século XIX. Publica em 1894, Les Chansons de Bilitis, traduzido em
português com demasiada liberdade poética como O Sexo de Ler de Bilitis, fruto de um extenso trabalho de pesquisa
histórico-literária para recriar o mundo grego pré-clássico, do século VI a. C.,
tendo sido posteriormente adaptado para piano por Claude Debussy. Com Bilitis,
uma suposta amante de Safo, vivemos a exaltação do amor em todas as suas
vertentes através de cento e cinquenta e oito poemas que narram a sua vida num
puro estilo grego, chegando mesmo, durante um curto espaço de tempo, a ser
confundidos, como o próprio autor propunha, com a produção original de uma
Bilitis que nunca existiu.
Afrodite
surge na senda de Les Chansons de Bilitis,
em 1896, e catapultou Pierre Louÿs para o sucesso literário do século em
França, vendendo um total de 350 mil cópias, sucesso que fez a fortuna da então
recém-criada editora Mercure de France. Desta feita, a acção decorre na
Alexandria do tempo da rainha Berenice IV (58-55 a. C.), irmã mais velha da
grande Cleópatra. Acompanhamos a mais bela mulher da cidade, originária da
Galileia, raptada aos 12 anos por mercadores que a instalam no bairro judeu e a
estabelecem como prostituta, ou cortesã. Sara, de seu nascimento, é denominada
pelos amantes como Crísis ou Criseida, nome que evoca um dos muitos epítetos de
Afrodite, dada a sua grande semelhança com a deusa do amor, e a perfeição
arcádica de uma beldade de cabelos dourados e pele alva e maviosa. Crísis, prestes
a completar vinte anos, amante de centenas de homens, e mulheres, pois o
lesbianismo, na Antiguidade helénica, era não só socialmente aceite como muito
frequente, nunca amou.
Quando se cruza
com Demétrio, o famoso escultor da Afrodite que povoa o centro do maior templo de
Alexandria, e ainda mais famoso amante da rainha, a sua vida mudará para
sempre. Cansado do amor exigente de Berenice, enfadado da louca devoção por
parte das mulheres da cidade, que o perseguem e assediam a toda a hora, Demétrio
contenta-se com a perfeição estética da estátua que criou. Contudo, positivamente
encantado com a conjugação da beleza de Crísis com a arte de a saber apresentar
e servir-se dela para respirar sensualidade e confiança, vê-se rejeitado nos
seus avanços. Desta forma, Demétrio apaixona-se até à servidão por Crísis. Deleitada
por prender o ardor do altivo e orgulhoso amante da rainha, Criseida exige-lhe
a consumação de três crimes como prova do seu amor: o roubo do espelho de Safo,
pertencente a Báquis, uma cortesã rival, a aquisição do pente de marfim de
Nitaucrite, antiga rainha do Egipto, pelo assassinato da sua então possuidora,
a esposa do Sumo-sacerdote, e a profanação do templo de Afrodite através do furto
do colar das Verdadeiras Pérolas de Anadiomene que embelezam a estátua divina,
fruto do labor do escultor.
Servil à
adoração pela única mulher capaz de lhe suscitar interesse, Demétrio aplica-se
na reunião dos três objectos. Tudo consegue sem deixar provas da sua infâmia. Na
noite anterior à entrega das jóias, deita-se, extenuado, e sonha – numa
descrição de extrema beleza, provavelmente o melhor capítulo da obra – com tudo
aquilo que Crísis lhe prometeu: a revelação dos seus encantos físicos, o
deslumbramento pelas artes da dança e da sedução, o cantar das poesias de amor
judaico e a união sexual com todos os seus requintes. Através deste sonho
transcendental, Demétrio liberta-se do feitiço do amor escravizador de Crísis,
abdica de reclama-la, de possuí-la, pois já a detém na forma que considera mais
absoluta, a estética.
Quando a cidade,
em plena celebração das Afrodísias, festividades em honra da deusa do prazer,
acorda para a revelação dos crimes hediondos, Crísis, braço activo de Eros nas
feridas de amor alheias é por Eros ferida, de uma forma que não previra.
Desejara apenas subjugar Demétrio, negar-lhe aquilo que todos os outros teriam
ao seu alcance por uma módica quantia, fazendo pagar-se a um preço
incomensurável, nunca antes exigido, e acaba, finalmente, vítima de amor,
desejando oferecer-lhe aquilo que nunca ofereceu a ninguém, o seu coração.
Todavia, não é
já o mesmo Demétrio que encontra. Esbarra contra a dura realidade do ideal
estético, de novo vencedor na alma do seu amado. Suplica-lhe que a ame, mas, no
seu renovado egoísmo, Demétrio exige-lhe uma condição: deve caminhar pela
cidade, nua, envergando apenas as três jóias, causadoras dos crimes que
horrorizam Alexandria. É presa e condenada à morte por envenenamento e, só no
momento em que deve beber a cicuta suicida, recebe a companhia indiferente de
Demétrio, que, logo após o último suspiro, modela o corpo de Crísis na exaltada
posição de amor do seu sonho para o modelo da sua derradeira obra-prima, a
Essência da Vida.
Esta é uma obra
de perfeição estilística absoluta. Nada é escrito ao acaso, tudo tem um
propósito. A profundidade literária que a obra contém nas suas meras 224
páginas é a prova de uma laboriosa delapidação artística digna da melhor
produção do movimento simbolista. Encontra-se dividida, ao sabor clássico, numa
tragédia em cinco actos, resultante do imolar do modelo ateniense afincadamente
treinado por Louÿs. A sua escrita não deixa de me recordar Colette, em Chéri. Contudo, o que para mim lhe
acrescenta mais valor é a tentativa de Pierre recuperar um tempo anterior à
moralidade e cosmogonia cristãs, possibilitando-nos um raro vislumbre sobre o mundo
perdido da Antiguidade. Devido à exposição da inerente sensualidade, mais
fresca, à flor da pele, da “juventude inebriada da terra”, como define o mundo
antigo, tão contrária à moral vitoriana, Pierre Louÿs seria durante décadas considerado
um autor maldito, relegado, no final da vida, para a obscuridade. É de autores
malditos, no entanto, que tantas vezes provêm as mais nuas verdades.
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