A meio da publicação da série de romances de aventura que lhe traria a fama, o Ciclo dos Piratas da Malásia – cuja figura central será o inesquecível Sandokan – que inicia em 1895, Emilio Salgari enceta o lançamento de uma nova série dedicada aos piratas de outras latitudes, o Ciclo dos Corsários das Antilhas (1898-1908) que, juntamente com o anterior, consolidará a sua reputação como pai da literatura popular contemporânea.
O Corsário, a Bela e o Monstro
A peça central deste ciclo, à volta da qual tudo gira, é o Corsário Negro, que Salgari não resistiu em tornar seu homónimo, Emilio di Roccabruna de Roccanera, Senhor de Valpenta e Ventimiglia, possessões nobiliárquicas do Ducado da Sabóia (actual região italiana da Ligúria). A sua história e motivações são complexas. Em plena guerra franco-espanhola, nunca devidamente mencionada[1], o Senhor de Ventimiglia original, o irmão mais velho de Emilio, na sua qualidade de nobre do Ducado da Sabóia (na altura aliada recorrente de França), e chefe militar de forças franco-saboianas, é vítima de uma vil traição. Um duque flamengo, Wan Guld, originário das terras do rei de França, é aliciado por Espanha e trai a companhia franco-saboiana de que fazia parte, então estacionada numa importante praça-forte, matando o Senhor de Ventimiglia para encobrir o seu acto pérfido. Recompensado com o governo da cidade de Maracaibo, uma das mais ricas da colónia espanhola da Venezuela, Wan Guld parte para a América e é seguido de perto pelo novo Senhor de Ventimiglia, o nosso Emilio Roccanera. Juntamente com os seus irmãos mais novos, que assumem os nomes de Corsário Vermelho e Corsário Verde, Emilio, ele próprio transfigurado em Corsário Negro, jurará vingança eterna a Wan Guld e uma perseguição sem quartel.
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Kabir Bedi como Corsário Negro no filme homónimo de 1976 |
No ponto inicial da narrativa de O Corsário Negro (1898), vários anos se passaram deste o princípio da vendeta jurada pelos três irmãos. Os Corsários Vermelho e Verde foram, entretanto, liquidados pelo sanguinário Wan Guld. De luto não já por um, mas pelos três irmãos, e acossado pelas forças espanholas, o Corsário Negro tenta uma acção desesperada, o assalto à cidade de Maracaibo. O primeiro capítulo abre em grande plano com o início deste assalto.
Apanhado de surpresa, Wan Guld perde o controlo da cidade e é obrigado a fugir. Segue-se uma longa fuga pelas florestas luxuriantes da Venezuela, com o Corsário Negro e os seus três homens de confiança, os amigos inseparáveis Carmaux e Wan Stiller, e o escravo foragido tornado pirata, Moko, na peugada do pérfido governador. Calor tórrido, doenças tropicais, fome, ataques de jaguares e de tribos indígenas hostis em nada aplacam a sede de vingança do Corsário.
Ainda assim, o Duque escapa uma vez mais. Enquanto o Corsário Negro reorganiza forças e firma alianças com os flibusteiros da Tortuga[2], os seus correligionários capturam um navio espanhol que transportava uma mulher nobre de alta estirpe, a misteriosa Honorata. Presente na Tortuga aquando da chegada de Honorata, o Corsário trava conhecimento com ela e cedo se apaixona arrebatadamente, indo ao ponto de pagar pessoalmente o resgate que os flibusteiros esperavam receber com o seu apresamento. Não há, contudo, um momento a perder, pois as forças flibusteiras estão já reunidas, prontas para o ataque ao novo reduto de Wan Guld, a cidade de Gibraltar (Venezuela). A sorte favorece os audazes, e o Corsário e os seus aliados apoderam-se da colónia espanhola, mas o Duque escapa-se sorrateiramente à terrível vingança que pesa sobre a sua cabeça. Ao regressar ao seu navio, o Relâmpago, o Corsário Negro sofre um ainda mais duro revés, pois toma conhecimento, pela mão de um prisioneiro hispânico, que a bela e misteriosa Honorata é a filha e herdeira de Wan Guld. Dividido entre o amor e a vingança jurada aos irmãos, é esta última que ganha preponderância no seu íntimo. O romance termina com a bela Honorata Wan Guld à deriva num pequeno bote, para onde tinha sido descida por ordem do Corsário, enquanto se aproxima uma tempestade ao largo.
Mel Ferrer como Wan Guld no filme Il Corsaro Negro (1976)
O segundo romance do ciclo, A Rainha das Caraíbas (1901), retoma a narrativa no ponto precedente. Consumido pelos remorsos de poder ter, séria e fatalmente, levado à morte da sua amada, o Senhor de Ventimiglia juntará um novo propósito à sua vida para além da vingança dos irmãos, encontrar Honorata. Auxiliado pelos companheiros da sua confiança, Carmaux, Wan Stiller e Moko, e confiando na ajuda do seu lugar-tenente, Henry Morgan (personagem histórico, um corsário britânico), Emilio Roccanera procura o fugidio Duque através de toda a costa da América Central. Em cada paragem tenta obter também informações quanto ao destino e eventual paradeiro da bela Honorata, acerca dos quais pouco se sabe, a não ser boatos de veracidade dúbia.
Oscilando entre o desespero pela incapacidade de encontrar a amada, e a sede de vingança cada vez maior contra Wan Guld, o Corsário Negro decide encerrar de uma vez por todas a pendência que está ao seu alcance, a vendeta. Nesse intento contará com a ajuda de novos aliados, os corsários Nicholas van Horn, Michel Grammont e Laurens de Graaf (personagens históricas, corsários de origem holandesa, francesa e neerlandesa, respectivamente). E para tal não olhará a meios, expondo-se a ataques temerários a cidades e fortalezas muito mais bem guarnecidas do que as forças que detém, a caminhadas desenfreadas pelas selvas tropicais americanas, a assaltos a propriedades de Wan Guld e, por fim, até à escalada e infiltração num forte onde o Duque poderia estar alojado, que termina com a captura do Corsário.
Salvo no último minuto pelo fiel Morgan quando estava prestes a ser entregue nas mãos do sanguinário Duque, o Corsário depressa se refaz e aproveita a oportunidade para ajustar contas com o seu mortal inimigo. Após uma batalha naval feroz entre as forças oponentes, e posterior abordagem do navio espanhol pelos flibusteiros, o Duque, vendo-se perdido, faz explodir o seu barco depois de proferir a terrível sentença, “Que morram todos!” (Salgari, 1997, p. 342)[3].
Honorata (Carole André) e o Corsário Negro
Só o Corsário e os seus três companheiros mais próximos sobrevivem, mas são afastados de Morgan e do Relâmpago devido à tempestade que se formara durante a batalha, indo naufragar nas costas da Flórida. Aí são aprisionados por uma tribo de indígenas antropófagos, que os pretende matar em sacrifício aos seus deuses e consumi-los ritualmente. No entanto, a sorte está do seu lado pois são indultados pela Rainha dos Antropófagos. E quem é essa rainha? Quem mais senão Honorata Wan Guld, naufragada naquelas terras meses antes e considerada pelos índios como um ser divino? O reencontro entre os dois amados é tocante. Honorata perdoa a intervenção do Corsário na morte de seu pai, e ambos decidem casar e partir para a Europa, para as possessões familiares do Senhor de Ventimiglia, que abonadona definitivamente o corso.
Os Filhos e Outros Descendentes
O sucesso editorial destes dois romances levou à continuação do ciclo. Seguiram-se, assim, as obras dedicadas aos filhos dos corsários. Em Iolanda, a Filha do Corsário Negro (1905), somos apresentados a Iolanda, filha de Emilio e Honorata, entretanto falecidos, numa batalha em Itália e durante o parto, respectivamente. Dezassete anos depois, uma Roccanera retorna à América Central, desta feita para reivindicar a herança das propriedades, e fortuna de Wan Guld, devidas a Iolanda por direito sucessório materno. Para que tal seja possível, Iolanda Roccanera terá que enfrentar outro pretendente à herança, o filho ilegítimo do Duque, o Conde de Medina e Torres. Toda a acção do romance se resume aos intentos opostos levados a cabo por cada um dos dois contendores. Para este efeito, Iolanda disporá da ajuda de Morgan, que entretanto assumiu a posição do Corsário Negro como líder dos flibusteiros, e dos companheiros do seu pai. No final, o partido de Iolanda sairá vencedor e esta casará com Morgan, que dela se enamora perdidamente, e que é nomeado governador da Jamaica pelas autoridades inglesas. Quanto a Carmaux e Wan Stiller, este é o momento da sua reforma como flibusteiros.
May Britt como Iolanda no filme Jolanda, la figlia del Corsaro Negro (1953)
O Filho do Corsário Vermelho (1908) desloca o foco para o sobrinho do Corsário Negro, Enrico de Roccanera, novo Senhor de Ventimiglia. Não é já por vingança ou motivos de herança que mais um Roccanera pisa terras americanas, mas sim pela procura de uma familiar perdida. Ao saber que o seu pai, o Corsário Vermelho, teria contraído um primeiro matrimónio com uma princesa índia – descendente directa do Grande Cacique do Darién – de quem teria tido uma filha, Inês, Enrico não se furtará a meios para a encontrar. Com a ajuda de Mendoza, antigo homem de confiança do Corsário Vermelho, e de um gascão, que se alista de moto próprio na flibustaria para alcançar glória e dinheiro, Dom Barrejo (que substituirão a dupla cómica Carmaux/Wan Stiller), Enrico Roccanera será forçado a percorrer milhares de quilómetros e ultrapassar inúmeras peripécias para resgatar a irmã Inês das mãos do homem que a criou e a pretende manter refém, o Marquês de Montelimar, amigo próximo do falecido Duque.
Os Últimos Flibusteiros (1908) constituem uma jogada comercial de Salgari, ou dos seus editores, para lucrarem com o sucesso dos anteriores volumes, prolongando uma vez mais a narrativa, desta feita para um derradeiro golpe final. Quando Inês de Roccanera, filha do Corsário Vermelho e irmã de Enrico, Senhor de Ventimiglia, retorna ao Panamá para receber a herança do avô, o Grande Cacique do Darién (detentor de uma fortuna fabulosa), é raptada pelo Marquês de Montelimar. Revelam-se, finalmente, as verdadeiras intenções do seu antigo protector: apoderar-se do ouro indígena. Caberá a Mendoza e a Dom Barrejo resgatar a Senhora Inês, que com eles partilhará a herança, como gesto de reconhecimento, levando à reforma destes últimos flibusteiros dignos de nota.
Análise e Comentários
Umberto Eco chamava a Salgari o “Verne italiano”[4], e tinha razão. Aquilo que Verne foi, sobretudo, para a ficção científica, Salgari é-o para a literatura popular dedicada às aventuras e façanhas heróicas. Tal como Verne, Salgari é autor de uma vasta obra, que conta com mais de duzentos romances e contos. À imagem do grande autor francês, há em Salgari o vigor característico dos escritores oitocentistas, o seu amor pela erudição enciclopédica e os dados factuais, com os quais preenche, como na ficção verniana, os entrementes dos seus livros.
Todavia, as semelhanças com Júlio Verne terminam aqui. O estilo de escrita de Emilio Salgari é ainda mais torrencial que o do autor francês, sacrificando, pontualmente, o rigor em detrimento de uma imagética muito vívida e verdadeiramente cinematográfica. Senhor de uma pujante imaginação, Salgari tem dificuldade em constranger a sua criação aos limites de um só volume, preferindo a liberdade que longos ciclos, como o do Corsário Negro ou Sandokan, lhe permitem. As suas obras começam sempre in media res, fulminando os leitores, que caem directamente no pino da acção, com o cheiro a pólvora, a maresia e a intrepidez humana. É como se Salgari estivesse sempre a um passo de se lançar numa nova demanda.
No entanto, semelhante estilo cataclísmico tem as suas consequências. O constante foco na acção prejudica o desenvolvimento interno das personagens. Conhecemos ao pormenor os seus actos, mas não os seus pensamentos. Aquilo que a obra ganha em ritmo e intensidade, perde em densidade e substância. Ademais, à medida que os volumes se sucedem, vão-se acumulando lapsos e incorrecções, resultado natural do seu estilo, que carecia de uma revisão antes da publicação. Tomemos como exemplo as incongruências na linha temporal do Ciclo dos Corsários das Antilhas. A acção do primeiro e do segundo volumes decorre algures entre 1680 e 1683, não sendo possível precisar, pois são apontadas em momentos diferentes como verídicas. Por sua vez, o terceiro volume, que ocorre cerca de dezassete anos depois dos anteriores, termina a 18 de Janeiro de 1671. Já no quarto volume, cuja acção é posterior à do terceiro em alguns anos, é-nos apontado o ano de 1685 como o período temporal do romance. Finalmente, o quinto volume terá de ser necessariamente posterior a 17 de Abril de 1687, última data apontada no tomo precedente. Como podemos concluir, conhecemos a sucessão de eventos, mas a sua datação não lhe é condizente, asseverando-se, inclusive, arbitrária e ilógica.
Um olhar mais apurado para a vida de Salgari talvez ajude a contextualizar o seu estilo e as consequentes incongruências. Mesmo tendo em conta a liberdade criativa que, sem dúvida, exerceu, a imensidão da sua produção tem uma explicação: uma questão de sobrevivência. Salgari teve uma vida atribulada, sendo perseguido por dívidas, tendo que lidar com a frágil saúde mental da esposa, Ida Peruzzi, que se foi deteriorando, e estando responsável pela subsistência de uma família numerosa de quatro filhos. Para se sustentar, e cumprir com os seus encargos, escrevia freneticamente, à semelhança de Camilo Castelo Branco. Se juntarmos a isto as precárias condições contratuais dos escritores no século XIX, pagos à página e por romance, e a débil legislação da propriedade intelectual, que favorecia os editores em detrimento dos autores, compreendemos a urgência em escrever cumulativamente, que de modo natural se prestava a erros e a lapsos. Eventualmente, a pressão sobre Salgari para cumprir contractos abusivos e estar à altura das suas responsabilidades, tornou-se tão grande que o levou ao suicídio, a 25 de Abril de 1911, apenas três anos depois da publicação do último romance do Ciclo dos Corsários.
Ida Peruzzi, esposa de Salgari
Neste sentido, podemos associar a paixão de Salgari pelos heróis e pela aventura como uma válvula de escape para a sua triste realidade. Ao escrever sobre paragens exóticas, feitos gloriosos e aventuras destemidas, Salgari estava a sonhar com aquilo que ele próprio nunca pôde viver. Na verdade, o autor possuía apenas um curso inacabado no Instituto Técnico Naval de Veneza e realizou simplesmente “algumas viagens de adestramento a bordo de um navio-escola e […] em navios mercantes de longo curso junto das costas do Adriático e do Mediterrâneo” (Salgari, 1998, p. 5)[5]. Todas as descrições de manobras náuticas nas suas obras baseiam-se nesta parca experiência e numa boa dose de poder imaginativo. De igual modo, as fontes para a concepção do Ciclo dos Corsários foram essencialmente bibliográficas, nomeadamente The History of the Buccaneers of America[6], de Alexandre Olivier Exquemelin, e A General History of the Pyrates (1724), do Capitão Johnson.
Não obstante, é lícito considerar que Salgari não é fátuo, ou ingénuo, o bastante para crer sem reservas nas fanfarronices dos seus heróis de papel. Perpassa sempre pelas suas histórias uma fina comicidade irónica, satírica, pautada na inclusão de alguns personagens encarregados desse papel – veja-se o caso da dupla Carmaux e Wan Stiller, de Moko, e do par Mendoza e Dom Barrejo. Se bem que funcionem como contrapeso cómico ao carácter sério e trágico dos protagonistas, há nestes personagens, sobretudo no par Mendoza/Dom Barrejo, algo de verdadeiramente quixotesco, que parece indicar uma crítica implícita e tácita ao heroísmo cavalheiresco.
Adicionalmente, a vingança é um vector importante das narrativas salgarianas. Está abundantemente presente no Ciclo dos Corsários, com a vendeta de Emilio Roccanera, e nos romances de Sandokan, com o ajuste de contas do príncipe malaio contra a Companhia Britânica das Índias Orientais. Acerca do tema da vingança como motivação literária, Alberto Manguel comenta algures:
“Imaginar a retaliação é, essencialmente, inventar histórias, o que constitui um exercício gratificante e saudável. Nessas imaginações, podemos ver concretizada uma forma de justiça e a satisfação vem da consciência intelectual da necessidade, não de nos vingarmos, mas de não permitirmos que o mal continue anónimo” (Manguel, p. 50)[7].
Conhecemos a vida atribulada de Salgari, particularmente os abusos de que foi alvo por parte dos seus editores, que enriqueceram à sua custa, enquanto este permanecia numa situação de penúria latente. Neste sentido, em que medida as suas histórias de vingança, que são sempre uma busca de justiça, não são uma retaliação velada contra as constantes injustiças de que foi alvo? Não pode a sua ficção ser uma forma de compensação pelas provações que sofreu, ou ainda, uma forma de satisfação, de que falava Manguel, de não deixar passar despercebidos esses males?
Há um dado que talvez ajude a esclarecer as respostas a estas perguntas. O suicídio de Salgari foi particularmente trágico: tentou levar a cabo a prática samurai da morte ritual, o seppuku (que consiste num acto de auto-evisceração), que correu mal, obrigando-o a cortar o pescoço para pôr fim à vida. Na secretária, deixou uma carta para os editores com as seguintes palavras:
“A vós que enriquecestes com o suor do meu trabalho, mantendo-me a mim e à minha família numa contínua semi-miséria, ou ainda pior, peço apenas que, como compensação pelos lucros que vos dei a ganhar, paguem o meu funeral. Saúdo-vos enquanto quebro a minha caneta” (Bernardini & Virga, p. 254)[8].
Como legado, Salgari deixou-nos um vasto corpus literário que ainda hoje é capaz de nos fazer sonhar. Sonhar não só com intrépidas proezas, sobretudo com um tempo perdido do auge, ou pretenso auge, pois que nos parece mais reconfortante assim pensar esse passado, da civilização europeia. Um tempo onde a Europa caput mundi partia à redescoberta do mundo, onde a palavra valia ouro, onde os talentos e as vocações tinham valor universalmente reconhecido, e onde as injustiças eram polidamente desfeitas por disputas de cavalheiros. Será, por certo, a esta distância e com os dados que a historiografia nos tem revelado, uma ilusão. Todavia, é de ilusões como esta que uma cultura, uma civilização, vivem e se alimentam. Salgari é o arauto, o prestidigitador dessa doce ilusão. E continua a sê-lo, mesmo de além-túmulo.
Excertos do filme Il Corsaro Nero, dirigido por Sérgio Sollima, ao som da banda sonora de Guido e Maurizio de Angelis
[1] É difícil identificar o referido conflito, que não está necessariamente constrangido pelos limites da história. No entanto, podemos tentar. Tendo em conta que a acção se passa no século XVII e se trata de uma contenda entre a França e a Espanha, estamos perante cinco opções: (1) Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), (2) Guerra Franco-Espanhola (1635-1659), (3) Guerra da Devolução (1667-68), (4) Guerra das Reuniões (1683-84), (5) Guerra da Liga de Augsburg (1688-97). Todavia, é necessário ponderar a participação da Sabóia no conflito. Assim sendo, das cinco opções só a (1), a (2) e a (5) são viáveis. Todas estas três hipóteses enquadram-se num teatro de guerra localizado na Flandres. Considerando duas datas (1680 e 1683), mencionadas de raspão entre o primeiro e o segundo volumes do ciclo, a opção (2) será a mais indicada.
[2] Salgari dedica largas páginas à definição e história dos flibusteiros. Resumidamente, na sequência das guerras civis e conflitos religiosos de finais do século XVI e inícios do século XVII, bem como da fuga devido à condenação por pequenos ou grandes crimes, vagas de ingleses, franceses e holandeses fugiram da Europa e refugiaram-se no interior das ilhas do Caribe espanhol. Ali viveram uma vida clandestina e solitária, caçando gado e animais selvagens, defumando depois a carne utilizando uma técnica que lhes foi ensinada pelos índios da região, o boucan, por isso conhecidos como bucaneiros. Perseguidos pelos colonos e pelas autoridades espanholas, os bucaneiros transferiram-se em bandos para a ilha da Tartaruga (Tortuga, na língua hispânica), ao largo do actual Haiti. Lá tomaram contacto com os piratas das costas das Caraíbas, a maior parte deles servindo capitães com carta oficial de corso, outorgada pelos Estados inglês, francês ou holandês, como forma de minar as colónias espanholas da lucrativa América central. Deste encontro surgiu uma sociedade original de mútuo acordo, os flibusteiros, homens intrépidos, de tiro certeiro e mortal, capazes das mais arrojadas façanhas com vista ao enriquecimento fácil que o saque de navios espanhóis de mercadorias proporcionava. Esta sociedade ficaria conhecida para a história como os Irmãos da Costa.
[3] SALGARI, Emilio (1997) – A Rainha das Caraíbas. Lisboa: Círculo de Leitores.
[4] Consultar “Interview Umberto Eco – Derrière les Portes”, minuto 18:24 a 18:35:
https://www.youtube.com/watch?v=iruXg9ma8LU [Consultado a 8-6-2021].
[5] SALGARI, Emilio (1998) – Os Últimos Flibusteiros. Lisboa: Círculo de Leitores.
[6] Publicado originalmente em holandês como De Americaensche Zee-Roovers (1678), mas mais conhecido pela tradução inglesa supramencionada de 1684.
[7] MANGUEL, Alberto (2018) – Embalando a Minha Biblioteca. Lisboa: Edições Tinta-da-China.
[8] BERNARDINI, Paolo L.; VIRGA, Anita; Coords (2013) – Voglio Morire! Suicide in Italian Literature, Culture and Society: 1789-1919. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing. [Tradução da minha responsabilidade a partir do original italiano: “A voi che vi siete arricchiti con la mia pelle, mantenendo me e la mia famiglia in una continua semi-miseria od anche di più, chiedo solo che per compenso dei guadagni che vi ho dati pensiate ai miei funeral. Vi saluto spezzando la penna”.]
É de excelência a tua resenha, muito obrigado pelo que nos dás a descobrir. Já tinha lido umas coisas sobre Salgari, mas confesso que não me aproximei muito pelo tom popular da sua escrita, por isso admiro ainda mais o teu labor que demonstra quanta criação existe para conhecer, quantos territórios por desbravar, impossível chegar a todos...
ResponderEliminarAcredito que temos de fazer algumas escolhas, mas também acredito que de vez em quando temos de sair dessas escolhas, ler aquilo que não queremos ler ou não conhecemos e nada nos diz, para não nos deixarmos condicionar, formatar, deixar conduzir para um beco em que aquilo que conhecemos se começa a repetir, correndo o risco de ver a nossa curiosidade esvair-se.
Ora essa, obrigado eu Nelson.
EliminarEra precisamente também a minha opinião sobre Salgari. Conhecia-o mas mantinha-me afastado devido a essa conotação. Contudo, a opinião de dois intelectuais que respeito muito fizeram-me mudar de ideias. Falo de Umberto Eco e de Alberto Manguel. Ambos leram Salgari na infância, e para ambos foi bastante importante na formação da sua imaginação e curiosidade literária. Pela sua parte, Eco chegava mesmo a dizer que Salgari foi uma das suas influências literárias, na sua obra posterior como romancista. O mesmo é assinalável para Hugo Pratt, o autor de Corto Maltese.
Quanto às considerações sobre as escolhas de leitura e suas consequências, também não podia deixar de concordar. Aliás, a minha própria experiência confirma-o. Quando comecei a ler, há muitos anos atrás, foi com obras um pouco avançadas de mais para a minha idade, como "Os Maias", ou o "Código Da Vinci". Isto entre os meus 13 e os meus 14 anos. O primeiro impulso foi desistir, mas nunca o fiz, talvez por casmurrice ou por curiosidade latente, e isso ensinou-me uma lição valiosa. A leitura não é um processo natural. Nós, leitores assíduos, temos tendência a achar que sim, porque já se tornou um prazer e uma constante tão invariável nas nossas vidas, que já não nos lembramos dos primeiros passos que demos. Contudo, trata-se, em boa verdade, de uma construção, de uma competência adquirida, e em que é preciso persistir continuamente, até que, por fim, se nos torne natural, inerente ao nosso ser. E isto vai de encontro a essa concepção que apontaste na medida em que, por vezes, encontramos as revelações, as epifanias e as inspirações onde menos as esperávamos encontrar. Daí a importância de sair da nossa natural zona de conforto literária, científica, filosófica, e afins.