quinta-feira, 1 de novembro de 2018

"Carta ao Pai" de Franz Kafka

É difícil catalogar Carta ao Pai. À partida, parece óbvia a sua inclusão no antiquíssimo género literário confessional criado por Santo Agostinho, no século IV d.C., para o qual contribuíram nomes tão sonantes como Rousseau e Tolstói. Na verdade, Carta ao Pai vai para além dos limites da confissão autobiográfica para ficcionar o mundo interior do autor, porque, tal como o próprio Kafka afirma, a escrita constitui para si “uma tentativa de me tornar independente, um ensaio de fuga”. Só escrevendo Kafka é capaz de se libertar, mesmo que por instantes, dos tormentos que o assombram e exorcizar os seus complexos. Desta forma, é propositadamente incerta a barreira entre o real e o ficcionado, a verdade e o seu recontar nesta obra que pretende traçar a origem desses males.
 
Primeira obra do género confessional
Começando por delinear a genealogia dos caracteres familiares num binómio pai/mãe (Kafka/Löwy), que reconhece ter herdado num equilíbrio desproporcional, Kafka associa a sua aguda sensibilidade, timidez e obstinação ao ramo Löwy, enquanto expõe a herança Kafka apenas como o resultado da manifestação do seu carácter possante, dominador, autoritário e irascível. Figura de referência da sua infância e juventude, o pai assumir-se-á sempre na vida de Franz como a medida de todas as coisas, a causa de todos os males e, pela educação rígida e fraqueza hipócrita em não seguir os próprios preceitos que lhe impõe, a razão da sua incapacidade para uma vida plena e saudável. Constantemente ausente na primeira infância devido ao trabalho absorvente da loja que criou, Hermann Kafka povoa as memórias mais antigas do filho com recriminações constantes, incompreensão e falta de aprovação, não falando já de carinho, pois Franz, no seu malnutrido lado emocional, não almejava sequer ao carinho paternal.
 
Hermann Kafka (1854-1931) e Julie Löwy (1856-1934), pais de Kafka
Outra experiência de infância irá condicionar Kafka filho, a relação mutável com a loja. Inicialmente vivida como ponto de encontro com a comunidade, foco de carinho exterior, surpresa, aprendizagem e de contacto íntimo com Hermann, a falta de paciência e a forma humilhante como este passa a tratar os empregados contratados, à medida que o estabelecimento vingava, tornaram Franz avesso ao local. A mera menção à loja é-lhe penosa, pelo sentimento de culpa que desenvolveu para com os funcionários, que tentou compensar pelos maltratos do patrão, seu pai. Neste sentido, a escolha futura da profissão não tomará sequer em consideração o negócio familiar. Kafka enveredará pelo ramo das seguradoras onde, na sua opinião, é explorado, racionalizando a sua complacência com esse mesmo sentimento de culpa e inferioridade desenvolvido na infância. Sentimento esse que o persegue ao longo da vida, dando origem a um pessimismo entranhado e uma incapacidade de se valorizar, mesmo perante o sucesso escolar que granjeou na escola e na universidade, que assume como uma farsa, esperando a cada momento ser desmascarado.

O foco central da obra é, contudo, a impossibilidade que Kafka reconhece em contrair matrimónio. Partindo da associação que estabeleceu entre sexo extraconjugal e sujidade, sem dúvida uma referência à sífilis, comum entre prostitutas na sua época, Franz só concebe a limpeza, sexual e moral, e felicidade superior no matrimónio. O casamento é para si uma forma de se afirmar como homem e, sobretudo, de consumar a plena independência da influência nefasta do pai. Todavia, acaba por chegar à conclusão de que também o casamento lhe é barrado, porque, se bem que uma fuga, é igualmente uma comunhão mais estreita com a figura paterna, orgulhoso do seu matrimónio harmonioso, que Kafka assume impossível de superar, contaminado que está com a presença de Hermann.
 
Milena Jesenská (1896-1944), uma das paixões platónicas de Kafka
Carta ao Pai é, sobretudo, uma fonte de referências autobiográficas, que os biógrafos de Franz Kafka têm utilizado com cuidado, tentando destrinçar a ficção da verdade nela narrada. É, também, mais relevante para o leitor comum, um vector de acesso à mentalidade kafkiana, permitindo-o nortear-se pelo mundo do absurdo e do ilógico que o caracteriza. Numa leitura superficial, como foi a minha, reparei na esporádica caracterização de si próprio como “verme”, impossível de dissociar de A Metamorfose. Certamente uma leitura mais cuidada, tendo em conta outros textos como O Castelo e O Processo, que não li, descobrirão mais conexões.

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