É difícil
catalogar Carta ao Pai. À partida, parece
óbvia a sua inclusão no antiquíssimo género literário confessional criado por
Santo Agostinho, no século IV d.C., para o qual contribuíram nomes tão sonantes
como Rousseau e Tolstói. Na verdade, Carta
ao Pai vai para além dos limites da confissão autobiográfica para ficcionar
o mundo interior do autor, porque, tal como o próprio Kafka afirma, a escrita
constitui para si “uma tentativa de me tornar independente, um ensaio de fuga”.
Só escrevendo Kafka é capaz de se libertar, mesmo que por instantes, dos
tormentos que o assombram e exorcizar os seus complexos. Desta forma, é
propositadamente incerta a barreira entre o real e o ficcionado, a verdade e o
seu recontar nesta obra que pretende traçar a origem desses males.
Começando por
delinear a genealogia dos caracteres familiares num binómio pai/mãe (Kafka/Löwy),
que reconhece ter herdado num equilíbrio desproporcional, Kafka associa a sua
aguda sensibilidade, timidez e obstinação ao ramo Löwy, enquanto expõe a
herança Kafka apenas como o resultado da manifestação do seu carácter possante,
dominador, autoritário e irascível. Figura de referência da sua infância e
juventude, o pai assumir-se-á sempre na vida de Franz como a medida de todas as
coisas, a causa de todos os males e, pela educação rígida e fraqueza hipócrita
em não seguir os próprios preceitos que lhe impõe, a razão da sua incapacidade
para uma vida plena e saudável. Constantemente ausente na primeira infância
devido ao trabalho absorvente da loja que criou, Hermann Kafka povoa as
memórias mais antigas do filho com recriminações constantes, incompreensão e
falta de aprovação, não falando já de carinho, pois Franz, no seu malnutrido
lado emocional, não almejava sequer ao carinho paternal.
Outra
experiência de infância irá condicionar Kafka filho, a relação mutável com a
loja. Inicialmente vivida como ponto de encontro com a comunidade, foco de
carinho exterior, surpresa, aprendizagem e de contacto íntimo com Hermann, a
falta de paciência e a forma humilhante como este passa a tratar os empregados
contratados, à medida que o estabelecimento vingava, tornaram Franz avesso ao
local. A mera menção à loja é-lhe penosa, pelo sentimento de culpa que
desenvolveu para com os funcionários, que tentou compensar pelos maltratos do
patrão, seu pai. Neste sentido, a escolha futura da profissão não tomará sequer
em consideração o negócio familiar. Kafka enveredará pelo ramo das seguradoras
onde, na sua opinião, é explorado, racionalizando a sua complacência com esse
mesmo sentimento de culpa e inferioridade desenvolvido na infância. Sentimento
esse que o persegue ao longo da vida, dando origem a um pessimismo entranhado e
uma incapacidade de se valorizar, mesmo perante o sucesso escolar que granjeou
na escola e na universidade, que assume como uma farsa, esperando a cada
momento ser desmascarado.
O foco central
da obra é, contudo, a impossibilidade que Kafka reconhece em contrair
matrimónio. Partindo da associação que estabeleceu entre sexo extraconjugal e
sujidade, sem dúvida uma referência à sífilis, comum entre prostitutas na sua
época, Franz só concebe a limpeza, sexual e moral, e felicidade superior no
matrimónio. O casamento é para si uma forma de se afirmar como homem e,
sobretudo, de consumar a plena independência da influência nefasta do pai.
Todavia, acaba por chegar à conclusão de que também o casamento lhe é barrado,
porque, se bem que uma fuga, é igualmente uma comunhão mais estreita com a
figura paterna, orgulhoso do seu matrimónio harmonioso, que Kafka assume
impossível de superar, contaminado que está com a presença de Hermann.
Carta
ao Pai é, sobretudo, uma fonte de referências autobiográficas,
que os biógrafos de Franz Kafka têm utilizado com cuidado, tentando destrinçar
a ficção da verdade nela narrada. É, também, mais relevante para o leitor
comum, um vector de acesso à mentalidade kafkiana, permitindo-o nortear-se pelo
mundo do absurdo e do ilógico que o caracteriza. Numa leitura superficial, como
foi a minha, reparei na esporádica caracterização de si próprio como “verme”,
impossível de dissociar de A Metamorfose.
Certamente uma leitura mais cuidada, tendo em conta outros textos como O Castelo e O Processo, que não li, descobrirão mais conexões.
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